Título: O que perdemos, o que ganhamos
Autor: Tereza Cruvinel
Fonte: O Globo, 25/12/2005, O País, p. 2

Na política, 2005 foi um ano fúnebre: as revelações que produziram a crise mataram sonhos, enterraram esperanças e liquidaram com a ilusão de purismo na política, até então encarnada pelo PT. A frustração foi grande, mas sofrida quase em silêncio, sem o estrépito dos protestos de rua, e isso foi uma preocupante tradução da descrença, que será traduzida pelo voto em 2006. Mas é Natal, e devemos nos lembrar de que nem tudo nos foi tirado, avanços foram preservados e ganhos conquistados.

O ano político, que já começou mal, com a eleição do presidente da Câmara movida pelo arrivismo, termina pelo avesso. O presidente que era favorito à reeleição já nem sabe se concorrerá; uma figura poderosa como José Dirceu perdeu os direitos políticos e o antes intocável ministro Palocci foi marcado pelo chumbo das denúncias. A oposição que quase mancava agora marcha armada com um discurso forte, contra a lambança de uma camarilha petista que enlameou todo o partido. Vivemos dias de radicalismo só comparáveis ao dos anos 50 e dele surgiram nichos de macartismo, assim entendida a intolerância diante da diferença no pensar.

Mas é sempre bom lembrar que atravessamos esta grave crise dentro da normalidade democrática. Houve um momento em que o presidente da República avisou que não ia renunciar nem se matar. De linguagem tão dramática ninguém se vale senão em situações limite. O discurso errático do presidente diante da crise contribuiu para agravá-la. No estouro das denúncias, falou em conspiração. Depois declarou-se traído, reconhecendo os delitos de seu partido. Hoje os reconhece, mas acredita que a crise foi inflada pela oposição e pela imprensa.

Dentro do marco democrático, as CPIs foram instaladas e o próprio governo, por meio da Polícia Federal e da Controladoria Geral da União, contribuiu com as investigações. Cabeças rolaram, e as cassações estão em curso - estavam, pelo menos, até a absolvição de Romeu Queiroz, mas não se deve ainda tomar aquela decisão da Câmara como tendência. Enfim, mais uma vez passamos no testes da maturidade democrática.

A frustração maltrata, mas também ensina. Na eleição de 2006 o eleitorado não estará procurando o salvador da pátria nem o fazedor de milagres. Se o próprio PT se igualou aos demais partidos, é assim que o eleitor o verá. Já em 2004, nas eleições municipais, houve uma nítida inclinação pelos candidatos com bom perfil gerencial, independentemente dos partidos a que pertenciam. Se Lula for reeleito, não será na cauda do cometa da esperança que passou pelo Brasil em 2002. Será pelo saldo de realizações de seu governo e pela expectativa de que poderá fazer mais - apesar do caixa dois, do valerioduto e do favorecimento financeiro a partidos aliados, tenha isso a forma de mensalão, semanadão ou ajuda eleitoral mesmo. Se o eleitorado preferir um outro, será por razões bem pragmáticas. Por acreditar que este outro poderá melhor dirigir o país e produzir soluções para tantos problemas acumulados.

Apesar da tragédia do PT e das promessas não cumpridas, o governo Lula tem saldos a apresentar. Está ferido, mas não fora do jogo. Pegou a economia numa situação difícil, venceu a ameaça de volta da inflação, restaurou a credibilidade, fez desabar o risco-país e incrementou as exportações. Para isso, renegou crenças passadas e pagou com desgaste e perda de apoio à esquerda. Depois de não renovar com o FMI, acaba de pagar o que lhe devia. Tira uma bandeira dos adversários de esquerda. O crescimento deste ano encolheu relativamente em relação ao do ano passado mas poderia ter sido pior. Outra graça foi a autonomia da economia diante de uma crise que, ao longo de seis meses, quase todo dia prometia o fim do mundo. O desemprego caiu no governo Lula, mas a geração de postos de trabalho está muito aquém do necessário. A renda cresceu um pouquinho e milhares de jovens pobres chegaram ao curso superior privado graças ao ProUni. Aos pobres, o governo agradou com o Bolsa Família e outros programas sociais, mas a classe média, além da desilusão, não viveu dias melhores, ao contrário dos bancos, que lucraram tanto. As flores da economia estão sendo exibidas como trunfos, mas, para apagar a frustração, o resultado de 2006 terá que ser excepcional. Isso é incerto, ainda é futuro.

Outras instituições, sobretudo a policial, frustram os brasileiros, perdendo para a violência e para o crime (embora a Polícia Federal tenha crescido em credibilidade). A Justiça soltou Maluf e continua morosa, mas este ano foi instalado o Conselho Nacional de Justiça, para fiscalizá-la com a participação de agentes externos. E o Congresso, pressionado a não dar férias para a crise, autoconvocou-se com remuneração extra, mas ficará de folga até 16 de janeiro. Pior: não produziu uma só reforma no sistema político para evitar a repetição de práticas eleitorais que estão na origem da crise.

Por isso e muito que não foi dito, a taxa nacional de felicidade foi muito baixa. Nem todos souberam lidar com a adversidade, mas o país soube. E isso é ganho.