Título: BELEZA ROUBADA DO PATRIMÔNIO NACIONAL
Autor: Letícia Helena/Raimundo Garrone/Alan Gripp
Fonte: O Globo, 24/12/2005, O País, p. 3

PF diz que colecionadores de renome estão por trás das quadrilhas especializados no roubo de bens tombados

Eles são ricos, têm alto nível cultural e uma compulsão doentia por artes. Na maioria dos casos, levam uma vida dupla: conciliam negócios legais ou carreiras bem sucedidas com a atividade criminosa. Investigações da Polícia Federal revelam que colecionadores reconhecidos no mercado estão por trás das quadrilhas especializadas no roubo de peças do patrimônio histórico e cultural brasileiro. Neste momento, pelo menos 635 obras que datam desde o século XVI estão sumidas, segundo o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).

A PF ressalta que esse tipo de criminoso representa uma minoria entre os colecionadores. Mas com uma particularidade impressionante: as peças roubadas, muitas vezes por encomenda, são adquiridas apenas para satisfação pessoal.

- As peças ingressam imediatamente em coleções particulares, para o prazer único de seu dono ou no máximo de um grupo muito restrito e confiável. Não existe outra destinação possível - diz Deuler Rocha, delegado titular da Delegacia de Combate a Crimes Contra o Meio Ambiente e Patrimônio Histórico da Polícia Federal.

De acordo com o Iphan, o Rio é o campeão de furtos, com 431 peças. Em seguida, aparecem Minas (80) e Bahia (33). Foram roubados desde imagens, jóias e armas até documentos, livros, pinturas, fotos, portas de madeira e objetos arqueológicos.

- Hoje há mercado para todo tipo de peças. Já prendemos um homem roubando colunas. A exceção são as obras com ouro. São destruídas para retirar o metal e a possibilidade de recuperação é mínima - diz Rocha.

A PF e o Iphan também têm informações de que parte dos bens roubados foi vendida no exterior. Para a Europa, por exemplo, podem ter sido levadas as mais de 900 fotografias raras do século XIX furtadas da Biblioteca Nacional, no Rio, no início do ano. A polícia diz estar perto dos assaltantes, que teriam sido contratados por colecionadores.

No caso específico da arte sacra há uma explicação para os roubos: o barroco brasileiro é um sucesso no exterior.

- Peças dos séculos XVIII e XIX são supervalorizadas e isso estimula a cobiça dos ladrões - afirma a subgerente de assuntos técnicos do Departamento de Patrimônio Material e Fiscalização do Iphan, Til Pestana.

Essa cobiça faz com que as igrejas do Rio acumulem um histórico de roubos. O último foi em setembro, na Igreja do Divino Espírito Santo, em Vila Isabel, da qual levaram uma imagem barroca de Santo Antônio. Mas furtos acontecem em toda a parte.

- Roubaram dois crucifixos da Santa Rita da Paróquia da Ressurreição. Desisti e deixei-a sem a jóia - conta o monsenhor José Roberto Devellard, coordenador da Comissão de Arte Sacra da Arquidiocese do Rio. - Santo Antônio é muito visado, porque roubam o menino para arrumar casamento.

Em São Luís, a PF apura o furto de azulejos dos casarões abandonados no centro histórico. A cidade é referência nacional por sua azulejaria dos séculos XVIII e XIX, e o estado de conservação da maioria dos 1.353 prédios tombados pela Unesco facilita a ação de colecionadores, que tiram o azulejo inteiro.

O inquérito apontou três envolvidos com os furtos. Segundo o delegado Sandro Augusto dos Santos, são pessoas pobres, que vendem as peças por qualquer trocado. Santos contou ainda que as investigações se concentram na internet, onde sites oferecem "azulejos portugueses raríssimos", por preços de R$15 a R$19.

Em Minas, que abriga 60% do patrimônio histórico e artístico tombado no Brasil, a Secretaria estadual da Cultura mantém um programa de proteção aos bens tombados e uma força-tarefa trabalha na recuperação de peças desaparecidas. Por conta das investigações, foi possível, por exemplo, recuperar três anjos barrocos roubados da Igreja de Santa Luzia, na Região Metropolitana de Belo Horizonte. As peças ficaram 47 anos desaparecidas e foram apreendidas em agosto de 2003 em uma galeria do Rio. No ano seguinte, a imagem de São Vicente Ferrer, da cidade de Campanha, foi devolvida. O santo, furtado havia mais de 10 anos, estava em São Paulo.

Um final feliz que os fiéis da Capela de São Francisco Xavier, em Nazaré da Mata - a jóia da arquitetura rural em Pernambuco - ainda esperam. Dois de seus principais santos estão desaparecidos. O altar foi saqueado e as talhas douradas das pilastras estariam sumidas até hoje se não tivessem aparecido no catálogo da exposição comemorativa dos 500 anos do Descobrimento. Estavam, irregularmente, com um colecionador de São Paulo.

A capela fica no Engenho Bonito, do agricultor Josemar Morais. Ele conta que recebe muitos visitantes interessados em comprar peças da igreja.

- Ter um patrimônio no engenho virou um risco de vida - diz Margarida Morais, mulher de Josemar.

Apesar dos problemas, o superintendente do Iphan no estado, Fernando Almeida, festeja uma boa notícia:

- Acabamos de recuperar em São Paulo uma Nossa Senhora das Mercês, do século XVIII, que estava sumida há três décadas.

COLABORARAM Itamar Mayrink (Belo Horizonte) e Letícia Lins (Recife)

" Pelo menos 635 obras que datam desde o século XVI estão sumidas, segundo o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) "

Legenda da foto: JOSEMAR E uma das peças da capela em Pernambuco: risco de vida para preservar o patrimônio