Título: AIDS, UMA OUTRA REVOLTA NAS PERIFERIAS DE PARIS
Autor: Deborah Berlinck
Fonte: O Globo, 25/12/2005, O Mundo, p. 28

Doentes pobres se ressentem de falta de assistência e discriminação enquanto vírus se espalha

PARIS. Domingo frio em La Courneuve, um dos subúrbios mais pobres de Paris. Cerca de 40 pessoas se reúnem para comer cuscuz marroquino no subsolo da associação Africa. Ao lado, um enorme conjunto habitacional conhecido como 4.000 desponta como o retrato da França dos excluídos: centenas de apartamentos num prédio caindo aos pedaços. No subsolo da associação, a comida circula, as pessoas conversam. Nos discursos, vem uma constatação. Além de lutarem contra a discriminação por serem pobres, quase todos ali lutam contra outro estigma: são vítimas da Aids.

A doença se espalha silenciosamente nos subúrbios pobres de Paris. Quase um mês depois da revolta de jovens - em grande parte de origem africana - que resultou na destruição de nove mil carros, as estatísticas do governo são reveladoras. Das sete mil pessoas contaminadas pelo HIV em 2005, mais da metade é de imigrantes ou filhos de imigrantes que moram em subúrbios pobres. La Courneuve fica em Seine Saint-Denis, o segundo departamento da região de Ile-de-France mais afetado pela Aids, depois de Paris.

Um comitê para tirar os doentes do isolamento

Réda Sadki, que vive o drama da doença na família, constata:

- Há verdadeiramente uma Aids dos ricos e uma Aids dos pobres. Uma Aids do Marais (bairro da moda em Paris, preferido por muitos gays) e uma Aids do subúrbio. Na periferia, os doentes são esmagados por suas vidas cotidianas.

Em 2003, quebrando o silêncio, mães do conjunto habitacional 4.000 criaram um comitê de famílias para tirar os doentes do isolamento. Sadki, que preside o comitê, conta que a associação Africa acompanhou a morte de vários jovens da periferia doentes de Aids sem que as autoridades soubessem e tomou uma atitude.

- Se há tantos soropositivos na periferia, é porque os poderes públicos nos abandonaram - afirma, acrescentando que a associação ainda espera o cumprimento das promessas do governo de preservativos baratos e seringas grátis.

Em Seine-Saint-Denis, a contaminação se dá em relações heterossexuais: o índice de 77,7% (contra a média de 53% na França) abrange majoritariamente imigrantes e mulheres jovens. É o caso de Sylvie-Christine Heffinger, de 32 anos. Filha de operários, ela foi contaminada por um namorado africano. Pouco depois de descobrir que tinha o vírus, conheceu o atual marido, também africano, que aceitou se casar com ela apesar da doença. Heffinger tem hoje quatro filhos e vive num conjunto habitacional para pobres em Ivry, outro subúrbio de Paris.

- Somos muitos (com o vírus) na periferia. Vivi sozinha essa doença durante mais de dez anos. Aqui nada temos. O único lugar onde eu podia falar da doença era o hospital, quando ia buscar o remédio. Em Paris, os soropositivos têm tudo. Aqui a gente tem que calar a boca e suportar - revolta-se Heffinger.

Em Val-d'Oise, um médico para 300 pacientes

O comitê de famílias ajuda como pode. Sylvie observou que sua filha que fez um tratamento preventivo contra Aids ao nascer tem sérios distúrbios nervosos. O comitê informou o problema a pesquisadores.

Sadki conta que os dois principais problemas dos soropositivos das periferias são o isolamento e a falta de recursos. No Marais, um médico atende a 20 pacientes de Aids. Num dos hospitais de Gonesse, periferia de Val-d'Oise, há um médico para 300 doentes, segundo ele.

Há mais do que um tabu nas periferias. Dalila Coulibaly, de 33 anos, casada, quatro filhos, descobriu que foi contaminada pelo marido. O choque foi duplo: ela soube que o marido, muçulmano, é polígamo. Casou-se religiosamente com outras três mulheres.

- Hoje minha revolta é religiosa. Muita gente rejeita tratamento porque acredita que está doente porque Deus quis. Mas nas periferias não é a Aids que nos mata. É a forma como nos tratam. Sofremos com a discriminação e a falta de habitação. E uma vez você se declara inválida, os bancos não lhe dão crédito - diz Coulibaly, agente hospitalar desempregada.

Fatiha Maya, de 47 anos, revolta-se com a diferença de tratamento em Paris e na periferia pobre:

- Em Paris, distribuem preservativos à vontade nos bares de homossexuais. Levam para as pessoas. Aqui, as pessoas têm que comprar.

Legenda da foto: SYLVIE-CHRISTINE com dois dos quatro filhos: contaminada por um namorado antes de se casar com outro homem, ela reclama de falta de assistência. Ao lado, jovens incendeiam um carro na revolta de novembro