Título: 'Os mandantes vão surgir'
Autor: Bernardo de la Peña
Fonte: O Globo, 26/12/2005, O País, p. 3

Presidente da CPI dos Correios diz que valerioduto era mais amplo que o mensalão

Depois de a CPI dos Correios divulgar relatório parcial no qual afirma ter confirmado o desvio de dinheiro público pelo esquema operado pelo ex-tesoureiro do PT Delúbio Soares e o empresário Marcos Valério de Souza, o presidente da comissão, Delcídio Amaral (PT-MS), diz que os responsáveis serão conhecidos: "Os mandantes vão surgir claramente". Antes de se dedicar ao recesso de Natal em Campo Grande (MS), o senador disse ao GLOBO, por telefone, que não importa o nome que o esquema tenha ou se os pagamentos eram regulares ou não. Houve crimes, "uma coisa mais ampla, ao sabor dos interesses políticos partidários", e os responsáveis serão indiciados, afirma.

No fim das contas, o senhor acha que existiu ou não o mensalão?

DELCÍDIO AMARAL: Evidentemente, vamos continuar trabalhando com as informações que alimentaram o software que está nos ajudando nas investigações no que se refere ao mensalão, diarião ou semanão. Os indícios detectados são fortes neste sentido, mas precisamos aprofundar para ter um quadro claro. Aí veremos se mantemos a tese do caixa dois ou a do mensalão, mas em uma interpretação mais ampla. Mensalão é uma palavra midiática criada pelo Roberto Jefferson, mas não necessariamente seriam pagamentos iguais e num mesmo dia de cada mês. É uma coisa mais ampla, ao sabor dos interesses políticos partidários.

E se, ao fim da CPI, só se chegar a Delúbio Soares e Marcos Valério de Souza como os responsáveis pelo esquema?

DELCÍDIO: Teremos o indiciamento das pessoas envolvidas. E esse número é muito maior. Tem gente do partido (PT), empresários, dirigentes de estatais. Não é uma coisa restrita a Valério e Delúbio. A tipificação dos crimes também será extensa e Osmar Serraglio (relator da CPI) está tomando cuidado para fazer isso corretamente.

Mas não teremos, no relatório, crimes cometidos sem apontar os mandantes?

DELCÍDIO: De forma alguma. Os mandantes vão surgir claramente.

As empresas que apareceram como fontes privadas das contas de Valério tinham interesses no governo?

DELCÍDIO: É possível. Existiriam interesses não apenas de caráter comercial, mas de se aproximar do governo. As ações foram nesse sentido.

Cite, por favor, um exemplo.

DELCÍDIO: É o caso dos bancos (BMG e Rural) que participaram das operações de empréstimo. Havia o interesse dessas instituições de se aproximar do governo na busca de viabilizar novos negócios e resolver questões pendentes como o caso do Banco Mercantil de Pernambuco (no qual o Rural tinha interesse). Existem outros casos semelhantes que mostram que havia o interesse de se aproximar do governo em busca de perspectivas comerciais.

Neste aspecto, o Brasil é diferente de outros países?

DELCÍDIO: Não. Ninguém está inventando a roda. O ruim aqui foi o modus operandi para que essas coisas acontecessem. Aí mora o perigo.

O senhor fala no uso do partido do governo como intermediário?

DELCÍDIO: Ou de partidos aliados. Mas essa moda não surgiu com o PT. É uma prática de outros governos e de outros partidos. Infelizmente, esse esquema ficou explicitado no atual governo. Mas é uma tecnologia antiga que já vinha sendo aplicada há muito tempo.

As operações de Valério com o PSDB mineiro, por exemplo, estarão no relatório final da CPI?

DELCÍDIO: O deputado Serraglio tem sido enfático dizendo que incluirá esses temas no relatório final da CPI. Com todas as suas nuances. O documento será fruto de um trabalho que foi feito ao longo de todo este tempo e que deve refletir tudo aquilo que foi observado.

E no caso dos fundos de pensão? Quais devem ser os resultados da investigação?

DELCÍDIO: Acredito que, apesar das dificuldades que enfrentamos, principalmente com as liminares (que impediram as quebras de sigilo), essas investigações vão se tornar uma excelente oportunidade para dar mais transparência às operações dos fundos de pensão. Com isso, não quero dizer que não existam fundos e corretoras que operem dentro da legalidade, mas isso não é uma constante e nem uma conduta generalizada dentro do mercado. E isso o sub-relator (o deputado do PFL baiano Antônio Carlos Magalhães Neto) já começa a demonstrar com apenas dois meses de trabalho.

Houve a constatação da CPI de que os 14 fundos investigados sofreram perdas de R$780 milhões. Há alguma possibilidade de se recuperar esses recursos?

DELCÍDIO: Tenho uma visão pessimista da recuperação total dos prejuízos que vierem a ser verificados, mas existe um arsenal de medidas judiciais para tentar rever esses recursos. Especialmente em relação às entidades responsáveis pelos fundos, às corretoras e eventualmente a alguns gestores dos fundos de investimento.

E que outras medidas de combate à corrupção a CPI pode propor?

DELCÍDIO: Criamos uma sub-relatoria para tratar única e exclusivamente de normas de combate à corrupção. Entre essas normas, temos não apenas projetos para atacar a lavagem de dinheiro como também para apresentar sugestões e propostas que melhorem os controles do sistema financeiro. Ficou claro que não há integração forte entre os diferentes órgãos de controle do governo. Existiram saques e movimentações absurdas e o Estado não dispõe de mecanismos que criem as condições necessárias para acompanhar, fiscalizar e promover integração entre esses órgãos.

O ESCÂNDALO QUE MARCOU 2005

A denúncia de corrupção nos Correios surgiu em 14 de maio, com a divulgação de uma fita em que o então chefe de Contratação e Administração da estatal, Maurício Marinho, é flagrado recebendo propina de R$3 mil. Ele fora indicado pelo PTB do então deputado Roberto Jefferson, aliado do governo Lula e suspeito de usar cargos públicos para arrecadar dinheiro para campanhas. Jefferson foi acusado ainda de pressionar a direção do Instituto de Resseguros do Brasil (IRB) para dar mesada de R$400 mil ao partido. Vendo seu esquema ruir, e sentindo-se abandonado pelo governo, revelou a existência do mensalão - o pagamento de mesada a deputados de partidos aliados do governo - e acusou o então tesoureiro do PT, Delúbio Soares, e o empresário Marcos Valério de Souza de operarem o esquema. Acusou ainda o então chefe da Casa Civil, José Dirceu, de ser o chefe do esquema e confessou ter recebido R$4 milhões de caixa dois do PT. A CPI dos Correios foi criada, depois a do Mensalão, e a dos Bingos instalada por ordem do STF. O governo lutou para evitá-las, mas não conseguiu. Karina Somaggio, ex-secretária de Valério, relatou detalhes do esquema e disse ter visto saírem malas de dinheiro de uma das agências dele. A descoberta de documentos do Coaf que revelavam que Valério sacara R$20,9 milhões em dinheiro vivo no Rural deu mais veracidade às denúncias. Documentos do Coaf comprovaram ainda a coincidência entre o troca-troca de partidos no Congresso. Esse movimento envolvera R$6,4 milhões entre agosto e outubro de 2003. Valério admitiu então ter avalizado e feito vultosos empréstimos para o PT, supostamente para pagar dívidas de campanha. Delúbio assumiu a mesma versão. O presidente Lula se disse traído, mas não citou nomes. A cúpula do PT virou pó: um assessor do deputado petista José Nobre Guimarães, irmão do então presidente do PT, José Genoino, é preso em São Paulo com R$200 mil numa mala e US$100 mil na cueca. Tudo caixa dois. O episódio acabou provocando a saída de Genoino. Depois o secretário-geral, Sílvio Pereira, também saiu diante da comprovação de que seu Land Rover fora um presente da empreiteira baiana GDK. A CPI dos Correios obteve a lista de sacadores nas contas de Valério no Rural. A relação compromete o ex-presidente da Câmara João Paulo Cunha (PT-SP); o então líder do PT, Paulo Rocha;, o líder do PP, José Janene; Janeneo presidente do PL, Valdemar Costa Neto; entre outros.Em depoimento à CPI, o publicitário da campanha vitoriosa de Lula em 2002, Duda Mendonça, admitiu que recebeu R$10 milhões do PT no exterior e que Valério foi quem lhe pedira para abrir a conta num paraíso fiscal. Petistas históricos choraram no plenário da Câmara. Para escapar da cassação, o ex-líder Paulo Rocha renunciou ao mandato. Valdemar também renunciou, assim como o deputado Carlos Rodrigues (PL). Os processos andaram. Jefferson foi cassado. Dirceu foi cassado. Mais de 40 pessoas perderam cargos em estatais e partidos. A CPI comprovou ainda o suposto desvio de dinheiro público, com a antecipação, pelo Banco do Brasil, de mais de R$70 milhões do contrato de Valério com a Visanet. Mas a manchar ainda mais a imagem do Congresso, o ano terminou com a absolvição do deputado Romeu Queiroz, do PTB de Minas, numa manobra que envolveu os 11 parlamentares da lista de cassáveis. Ele recebera mais de R$400 mil de Valério.

Legenda da foto: DELCÍDIO: "EXISTIRIAM interesses não apenas de caráter comercial, mas de se aproximar do governo. As ações foram nesse sentido"