Título: MAIS COOPERAÇÃO E MENOS INTERVENCIONISMO
Autor: Marcelo Coutinho
Fonte: O Globo, 30/12/2005, Opinião, p. 7

Há mais de um século, em 1889, os Estados Unidos propunham na Conferência Interamericana de novembro um arranjo econômico que envolvesse todos os países do hemisfério, em nome de uma identidade continental que, supostamente, contrapunha-se à Europa. Não obtiveram sucesso em sua proposta graças à recusa de países como o Brasil e a Argentina, que temiam os reais interesses de uma potência em ascensão.

Naquela época os EUA já disputavam com a Inglaterra o domínio da América Latina. Aos poucos foram se tornando insuperáveis e consolidaram sua esfera de influência ao longo do século XX. Seguros, então, de sua hegemonia, investiram tempos depois na I Cúpula das Américas, em 1994, num projeto ainda mais ambicioso: uma área de livre comércio, a Alca, que após muitas negociações deveria entrar em vigor em janeiro passado não fosse, uma vez mais, pela resistência do Cone Sul.

Dividida e tumultuada, a cúpula hemisférica chegou a sua quarta edição em 2005 sem qualquer sinal de que o plano norte-americano seja implementado. Na realidade, parece hoje ainda mais distante do que em 1889, dado o bom momento por que passam as economias de países sul-americanos e a intensidade crescente de suas articulações no âmbito do Mercosul e da Comunidade Sul-Americana de Nações (Casa). Ambos os aspectos aumentam os graus de liberdade dessa parte do continente e enfraquecem os argumentos que sugerem ser a Alca a única saída para o desenvolvimento regional.

Não é, de fato, a única saída, e se mostra a cada dia menos importante, seja porque os EUA não apresentam nada concreto que satisfaça as demandas dos países sul-americanos seja porque esses escolheram uma estratégia integracionista autônoma: a um só tempo, aprofundam laços intra-regionais e buscam relações globais, negociando com quem estiver aberto a negociar, inclusive os novos mercados asiáticos. Ademais, o ideário econômico do qual a Alca se origina, o neoliberalismo, encontra atualmente menos respaldo. Não à toa o combate ao desemprego e à pobreza foi eleito, por unanimidade, como o tema central da cúpula em Mar del Plata, em resposta favorável à sugestão dos anfitriões argentinos, justamente os que mais sofreram com as reformas incontidas em direção ao mercado da década passada. O consenso de Washington se quebrou, colocando em discussão opções de governabilidade democrática, pois, em princípio, o arquétipo de bom governo difundido nos anos noventa não surtiu os efeitos positivos esperados.

Portanto, já é tempo de os EUA procurarem compreender de maneira mais flexível o que ocorre ao sul do Panamá. Depois de duas décadas mergulhados em crises sistêmicas, parece finalmente haver nos últimos anos uma expansão no capitalismo que beneficia os países emergentes. Eles precisam aproveitar essa onda de crescimento e gostariam muito de ter a grande nação do Norte como parceira, mas sem amarras, tutela ou comprometimento que diminuam suas margens de manobra.

Estão simplesmente nutrindo o sonho americano que os Estados Unidos conhecem tão bem porque o inventaram. Dessa forma, a Casa Branca agora ajudaria bastante, por exemplo, retirando suas tropas da América do Sul ou, ao menos, evitando novos problemas como, recentemente, no Paraguai, onde se suspeita a futura instalação de mais uma base militar tendo em vista, como as outras, também garantir recursos naturais estratégicos. Mais cooperação e menos intervencionismo. É disto que a harmonia entre as Américas precisa.

MARCELO COUTINHO é coordenador-executivo do Observatório Político Sul-Americano do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj).

N. da R.: Luiz Garcia volta a escrever neste espaço na próxima semana.

A Casa Branca ajudaria bastante se retirasse as suas tropas da América do Sul