Título: VEJAM A HISTÓRIA, SENHORES!
Autor: Geraldo Luís Lino/Lorenzo Carrasco
Fonte: O Globo, 30/12/2005, Opinião, p. 7

Os embates retóricos que marcaram a recente Cúpula das Américas, posteriormente estendidos e aprofundados pelo descontrole emocional do presidente venezuelano Hugo Chávez, ressaltam o contraste entre as exigências de um processo de integração crucial para o futuro da América do Sul e a reduzida estatura dos homens aos quais cabe dirigir os destinos das nações do continente americano nesse momento crítico da História. Parafraseando Schiller, em sua descrição da Revolução Francesa, pode-se dizer que uma grande oportunidade histórica se encontra ameaçada pelas limitações de homens pequenos.

Há condições inusitadas para que a Ibero-América assuma um papel protagonista na transformação da ordem de poder mundial em curso, e é triste constatar a inexistência de estadistas entre os mandatários americanos, de Buenos Aires a Ottawa. Na América do Sul, a instabilidade de Chávez pode chegar ao ponto de colocar em risco as potencialidades oferecidas pelo próximo ingresso da Venezuela no Mercosul como membro pleno - importante etapa para a integração da América do Sul a partir do bloco.

Logo após a cúpula, a diplomacia brasileira começou a divulgar a tese do "relançamento" do Mercosul. Em entrevista ao "La Nación" (8/11), o assessor internacional da presidência Marco Aurélio Garcia reconheceu que o bloco necessita "ir além da retórica", com uma institucionalização maior e estruturas mais sólidas, em um modelo similar ao da União Européia. Uma das propostas em discussão, não mencionada por ele, é a criação de um Parlamento do Mercosul.

É preciso evitar a tentação de iniciativas como um Parlamento regional. Além de acrescentar uma instância decisória de utilidade discutível, em um momento em que a própria democracia formal mostra deficiências éticas, um legislativo regional pouco poderia contribuir para a imprescindível conscientização sobre os benefícios da integração entre uma sólida maioria das populações - sem a qual o processo corre o risco de se ver enredado em embates sobre as vantagens percebidas por setores de cada país.

Exemplos europeus positivos são a ênfase inicial conferida à infra-estrutura física (evidentemente, facilitada por vias de comunicação antigas de séculos), a integração de certas cadeias produtivas e os investimentos dos países-líderes nas economias mais fracas. No caso da América do Sul, a prioridade máxima deveria ser conferida à integração viária e energética.

A adesão da Venezuela irá proporcionar ao Mercosul uma considerável massa crítica (70% da população, 76% do PIB, 79% do PIB industrial em paridade de poder de compra e 82% da produção de eletricidade da América do Sul), transformando-o em um potente centro gravitacional capaz de exercer uma influência determinante sobre a economia física - e, em conseqüência, a evolução política -- de todo o subcontinente. Em especial, abre caminho para projetos de grande alcance, como o gasoduto Venezuela-Brasil-Argentina, a interligação das usinas hidrelétricas de Guri e Tucuruí (que pode disponibilizar cerca de mil megawatts de energia à Venezuela e ao Brasil apenas com uma linha de transmissão) e, futuramente, a interligação das bacias hidrográficas do Orinoco, Amazonas e Prata, formando a Grande Hidrovia vislumbrada desde o século XVIII, a qual proporcionaria a navegação fluvial plena entre o Caribe e o Rio da Prata (já se pode anteouvir o alarido dos ambientalistas radicais).

Não obstante, o Mercosul do futuro e o futuro da integração passam por dois fatores-chave. O primeiro é a consolidação da parceria Brasil-Argentina, que, acima de disputas comerciais localizadas, pode combinar suas consideráveis capacidades industriais, científicas e tecnológicas para oferecer à região importantes aportes para um progresso compartilhado. Uma dessas possibilidades seria o estabelecimento de uma política regional de biossegurança, para o enfrentamento conjunto de problemas como a febre aftosa, a gripe aviária, a adoção de critérios comuns para os organismos geneticamente modificados (transgênicos) e outros.

O segundo fator é uma ampla conscientização de que a integração não deve ser vista apenas como um processo econômico e político, mas como parte de um "projeto civilizatório" baseado nas raízes culturais cristãs comuns e em uma experiência histórica de miscigenação que, a despeito de grandes problemas não resolvidos, representa exemplo para um mundo tão carente de valores de respeito e tolerância com as diferenças. Para tanto, dada a dimensão liliputiana das lideranças políticas existentes, a cidadania regional não pode esperar que as respostas venham de cima para baixo. Em vez disso, ela precisa aprofundar e ampliar os diálogos diretos que têm ocorrido entre diversas de suas instituições representativas - culturais, científicas, empresariais etc. -, para que esse conhecimento e entendimento possam influenciar os processos políticos no rumo determinado pelas exigências históricas.

GERALDO LUÍS LINO e LORENZO CARRASCO são diretores da organização Movimento de Solidariedade Ibero-Americana (MSIa).

Uma grande oportunidade está ameaçada pelas limitações de homens pequenos