Título: A ELEIÇÃO DO PAPA
Autor: D. EUGENIO SALES
Fonte: O Globo, 31/12/2005, Opiniao, p. 7

Os primeiros meses do pontificado de Bento XVI têm sido momentos de graça, que parecem uma extensão daqueles vividos em abril do ano que termina: a extraordinária repercussão da morte de João Paulo II e a eleição de seu sucessor. Contra todos os prognósticos pessimistas de uma Praça de São Pedro vazia, vemos multidões, até maiores que antes. Multidões abraçam Bento XVI e são por ele abraçadas, a ponto de obrigá-lo, mesmo gripado, a realizar a audiência das quartas-feiras na Praça de São Pedro, em vez de utilizar a Sala Paulo VI, mais adequada a esta época do ano (inverno na Europa).

A Jornada Mundial da Juventude na Alemanha, ¿jornada dos dois Papas¿, espantou pelo número congregado, mas também pela animação, pois ¿a Igreja é jovem¿, como disse o Papa na missa de inauguração de seu pontificado. Aplaudiam o novo, mas também recordavam João Paulo, o Grande, Papa de toda uma geração.

Diante desse quadro, a insinuação ¿ anônima, pois a fonte pediu para não ser identificada ¿ de que teria ocorrido algo de menos digno no processo de eleição do Papa exige de minha parte uma resposta serena e objetiva.

Em primeiro lugar, há na mente de muitos um equívoco quanto à noção de inspiração: a Fé Católica nunca ensinou que a ação do Espírito Santo na eleição do Papa, bem como nas diversas escolhas que um fiel cristão faz em sua vida, fosse uma espécie de ditado, como se o Espírito Santo nos dissesse com detalhes o que fazer, com quem casar, em que tipo de congregação religiosa entrar, quem nomear, em quem votar etc. Deus nos acompanha em todos os momentos da nossa vida, inspirando-nos, falando através das coincidências, dos bons conselhos. Às vezes, somos instrumentos de Deus na orientação de uma pessoa, sem nem mesmo percebermos.

A ação do Espírito Santo não pode ser oposta à diligência que devemos ter para chegar a uma conclusão, estudando o problema de seus vários ângulos, buscando o conselho dos mais experientes, sem jamais esmorecer na oração. A eleição do Papa não é diferente, e a Igreja nunca disse que fosse.

Note-se que no pré-conclave os cardeais, eleitores ou não, rezam, celebram a eucaristia, mas também conversam sobre os problemas da Igreja. Nas Congregações Gerais, que se reúnem diariamente, todos os cardeais podem tomar a palavra. É normal, é humano, e desejável que aí os srs. cardeais já comecem a formar uma idéia de quem pode ter o seu voto.

Não há uma campanha pública. Contudo, as consultas são não só normais, como previstas. João Paulo II, na Constituição ¿Universi Dominici Gregis¿ (1996), que regula, em detalhes, a eleição do Papa, teve o cuidado de afirmar: ¿(...) não é meu intento proibir que, durante o período de Sé vacante, possa haver troca de idéias acerca da eleição¿ (nº 81). Regulamentando o próprio processo de votação, estabelece ¿ como já previa a legislação anterior ¿ que se os cardeais não chegarem a um consenso até o terceiro dia de votação far-se-á por um dia ¿uma pausa de oração, de livre colóquio entre os votantes e de uma breve exortação espiritual...¿ (nº 74). São previstas novas pausas com a mesma orientação se necessárias.

Por fim um comentário sobre a própria pessoa do Papa: conheço-o há quase 30 anos, e posso testemunhar que é um homem sem outra ambição do que servir à Igreja; não fez outra coisa ao longo de sua vida. Para reforçar este testemunho, lembro que o cardeal Ratzinger, convidado por João Paulo II para assumir um dicastério na Cúria Romana, no ano seguinte ao do início de seu pontificado (1979), resistiu o que pôde, não querendo deixar a Arquidiocese de Munique; era bispo há, apenas, dois anos. Disse ao Papa que ficar mais um pouco era para ele uma questão de fidelidade. Convidado de novo em 1981, resistiu ainda, mas terminou atendendo ao chamado de Deus na voz do Sucessor de Pedro. Foi coerente com o seu ensino teológico e com a sua biografia.

É sabido que, por três vezes, tentou deixar o cargo, após exercê-lo por 10 anos: em 1991, 1996 e 2000; acaba desistindo, por obediência e amizade. A isto alude numa entrevista dada a uma emissora católica americana (EWTN), em 2003: ¿...vendo o sofrimento do Papa... Eu não poderia dizer ao Papa: Vou me aposentar, vou escrever meus livros. Vendo-o como ele está se dando inteiramente, eu tenho que continuar.¿

Por fim, lembro algo que é público: em 18 de abril deste ano, sob numerosos e entusiásticos aplausos, o cardeal Ratzinger, na missa antes da entrada em conclave, abriu seu coração, falou com sinceridade, sem meias palavras, do que o afligia, dos males do nosso tempo, chamando-os pelo nome. Para alguém que, segundo a interpretação de alguns, sabia estar a poucos passos de se tornar Papa, não foi um discurso ¿politicamente correto¿. Não foi, portanto, um discurso de candidato.

Nestes tempos de transição faz-se mister cerrar fileiras no apoio ao Santo Padre Bento XVI, Sucessor de Pedro, pois os inimigos da obra de Cristo estão atentos e ativos. Correntes de pensamento reinantes em nossos dias continuam contrastando com João Paulo II e não deixarão em paz o seu sucessor. Permanecem ativos, procurando desfigurar o corpo doutrinário deixado por Cristo sob a responsabilidade do Magistério Eclesiástico, que tem no Sucessor de Pedro o guardião da fé cristã.

D. EUGENIO SALES é cardeal-arcebispo emérito da Arquidiocese do Rio.

Não há uma campanha pública. As consultas são não só normais, como previstas