Título: PÁGINA VIRADA
Autor: Merval Pereira
Fonte: O Globo, 07/01/2006, O País, p. 4

A crise interna do PT vai se explicitando à medida que a crise política do país continua seu curso sem dar mostras de que esteja próxima do fim. Mesmo cassado e sem ânimo para manter seu espaço dentro do PT, o ex-ministro José Dirceu mantém-se um protagonista da crise, seja pela possibilidade, remota, mas existente, de que revele no livro que está escrevendo fatos que envolvam definitivamente o presidente Lula com as denúncias de corrupção, seja pelas declarações políticas que dá. Em Paris, ao dizer que o PT para ele é uma ¿página virada¿ em sua vida, Dirceu, o principal organizador do partido desde a sua fundação, revelou a intensidade do ressentimento político que guarda, o que potencializa a ameaça que seu livro representa.

Ao desqualificar atuais líderes partidários, Dirceu mostrou também o tipo de liderança centralizadora e dogmática que exercia no partido o que, para muitos, foi o que levou aos desmandos cometidos. O ex-presidente do PT Tarso Genro, por exemplo, se colocou no grupo dos que tentam ¿suprimir¿ do partido atitudes como a do ex-ministro-chefe da Casa Civil José Dirceu. ¿Eu conheço a personalidade do Zé Dirceu. Sei que ele realmente não gosta de ouvir quem não pensa como ele e quem ele não tutela¿, disse Tarso. Foi uma resposta à declaração de Dirceu em Paris: ¿Ficar no PT para ouvir os discursos do Tarso e do Raul (Pont) não dá...¿.

Essa divisão petista já havia ficado clara anteriormente em diversos embates mesmo dentro do governo, entre os ¿eleitoreiros¿, comandados por Dirceu, e os ¿reformistas¿, grupo que considerava inadequado o pragmatismo que o partido utilizava nas relações políticas e nas ações do governo.

O então assessor especial da Presidência e fundador do PT, Frei Betto, amigo de Lula, acabou deixando o governo devido a desentendimentos desse teor, culminando com discordâncias sobre a maneira de gerenciar o Bolsa Família, que se transformou em uma arma eleitoral para o governo e não um caminho de inclusão social.

Frei Betto se recusou a assinar um manifesto de intelectuais a favor de José Dirceu, e escreveu um livro intitulado ¿Mosca Azul¿, que será lançado nos próximos meses com uma visão bastante crítica do período em que esteve no governo de Lula. Também no início do ano Francisco Whitaker, da Comissão de Justiça e Paz da CNBB e um dos organizadores do Fórum Social Mundial, desligou-se do Partido dos Trabalhadores, divulgando uma carta com sérias críticas à atuação do PT nos últimos anos.

¿Há tempos constatava ¿ com tristeza, evidentemente ¿ a facilidade com que no partido iam sendo assimiladas as práticas e a maneira de fazer política, usuais no Brasil. Essa tendência ¿ apoiada no sentimento de impunidade que também é usual em nosso país ¿ não podia senão se exacerbar com a conquista da Presidência da República¿, escreveu.

Whitaker diz que ¿a gravidade dos desvios por si só justificaria plenamente uma desfiliação ¿ embora pudesse doer fazê-lo quando o partido se encontra sob um fogo cerrado e raivoso. Entretanto, na luta eleitoral e ao integrar-se às nossas instituições políticas, ele foi pouco a pouco se deformando, e conheceu uma dramática involução¿, escreveu Whitaker.

Ele atribui ao contágio das ¿múltiplas distorções e insuficiências da democracia representativa brasileira¿ o abandono do projeto que mobilizava seus militantes. Whitaker relembra o projeto do PT, ¿nascido de baixo para cima¿ com objetivo claro: construir uma sociedade justa e igualitária, na perspectiva de um socialismo democrático ¿ descartando o uso da violência para lá chegar.

Com relação à implantação do socialismo como objetivo inicial do PT, o sociólogo Hamilton Garcia, em sua tese de doutoramento em história moderna e contemporânea da Universidade Federal Fluminense intitulada ¿PCB e PT em dois tempos ¿ socialismo, pragmatismo e poder¿, faz uma correlação entre a estratégia desses dois partidos radicais e a luta democrática: ¿A estratégia destes partidos subordinou as lutas em curso a seus objetivos socialistas¿, argumenta Garcia, que explica esse ¿desvio recorrente¿ com um modelo explicativo da sociedade ¿que se petrificou sob a influência do socialismo russo, de corte stalinista, que ignorava a base real das formações nacionais¿.

Essa faceta autoritária do PT sob o comando de José Dirceu postergou, segundo Garcia, a chegada de Lula ao poder devido a posturas como sectarismo na oposição, soberba na articulação interpartidária, desmonte da militância crítica via profissionalização selvagem, embotamento da máquina de propaganda, ¿medidas que ajudaram a identificar o radicalismo petista com o velho ranço stalinista do Movimento Comunista Brasileiro¿.

Segundo Hamilton Garcia, a força do PSDB se erigiu como contraponto à incapacidade do PT de participar do desenvolvimento democrático do país, se recusando de se engajar no governo Itamar Franco e sempre contendo sua ala moderada por meio de punições internas desde a eleição de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral em 1984. A insuficiência da proposta do PSDB, na visão de Garcia, só não teve conseqüências eleitorais para o PT em 1998 porque o PT manteve ¿seu desajuste crônico com o desenvolvimento democrático¿.

Garcia ressalta que essa atitude do PT recebeu sempre ¿excepcional cobertura da intelectualidade petista, mais interessada em descobrir o caminho, acelerado ou lento, para o socialismo, ao invés de desvendar as formas de radicalização democrática capaz de romper a couraça patrimonialista das classes dominantes¿. (Continua amanhã)