Título: CRÍTICA E AUTOCRÍTICA
Autor: Merval Pereira
Fonte: O Globo, 08/01/2006, O País, p. 4

Ao mesmo tempo em que se prepara para uma campanha eleitoral totalmente diferente de tantas que já disputou nos últimos anos, especialmente por ser a primeira em que está no governo, o PT vai expondo suas dissidências internas, talvez liberando as energias represadas durante todos esses anos em que a centralização da cúpula partidária era a tônica. De Paris, onde escreve seu livro, o ex-todo-poderoso José Dirceu critica a atual direção partidária do PT e recebe em troca a acusação de centralizador e stalinista, acusação que está no centro de uma outra grande discussão, a da política cultural do governo Lula.

O poeta Ferreira Gullar, por vocalizar as críticas de um grupo ao que considera ineficiência do Ministério da Cultura, recebeu em troca a classificação de ¿stalinista¿ de um assessor do ministro Gil, o que desencadeou amplo debate entre a intelectualidade. Também o escritor Fernando Morais, que ajuda Dirceu a escrever seu livro, ao ser acusado de ¿stalinista-quercista¿ por Diogo Mainardi, rejeitou apenas o epíteto ¿quercista¿, esclarecendo que já não o era.

Francisco Whitaker, uma das principais lideranças da ala católica do PT e um dos pioneiros do Fórum Social Mundial, se desligou do partido nos primeiros dias do ano com uma carta em que faz severas críticas aos rumos que o PT tomou nos últimos anos, sem citar diretamente José Dirceu, mas criticando os seus métodos na direção partidária e os culpando pelo ¿tamanho e a gravidade das irregularidades agora praticadas¿.

Whitaker constata com espanto que ¿o partido tinha até dinheiro no exterior, ao melhor estilo dos aproveitadores de sempre¿, e diz que os erros da direção abriram ¿os flancos possíveis para a oportunidade com que a direita sonhava: tentar destruir, junto com a mídia que controla, esse partido incômodo e seu preocupante projeto de mudança¿. Whitaker tem uma visão pessimista da atividade parlamentar, que exerceu por dois mandatos de vereador em São Paulo, mas que considera pouco produtiva e muito burocratizada. Critica também a transposição para dentro do partido desta atmosfera. Ele classifica de leninista a corrente que há anos dirige o PT e diz que ela ¿usou a mão-de-ferro da disciplina partidária para construir uma falsa unidade. E as bases do partido passaram a ser simples espectadoras das decisões que iam sendo tomadas¿.

Um subproduto ¿pouco positivo dessa orientação¿ foi a possibilidade de ¿alocar¿ os quadros partidários na máquina do Estado, na análise de Whitaker, que ressalta que o pragmatismo foi avançando sempre mais, ¿e por caminhos ainda mais equivocados¿.

¿Se para exercer o poder é necessário ganhar eleições, para ganhar eleições é preciso muito dinheiro. Se a ética é somente uma tática ¿ será que foi assim desde o começo do partido? ¿ não interessa de onde vem esse dinheiro. Menos ainda para quem acha que os fins justificam os meios¿, alfineta ele. Quando se controla a administração pública, lembra Whitaker, ¿as tentações se multiplicam. E hoje constatamos com espanto que até o dinheiro público pode ter sido apropriado para fins partidários¿.

Por sua vez, o sociólogo Hamilton Garcia, que fez uma tese de doutorado em História Moderna e Contemporânea da Universidade Federal Fluminense comparando as atuações do Partido Comunista Brasileiro e do PT, que tem como subtítulo ¿Socialismo, pragmatismo e poder¿, diz que o discurso da utopia socialista petista serviu para ofuscar ¿a terrível obra do pragmatismo¿, que teve entre outras conseqüências ¿afastar o grosso das classes populares do movimento radical de esquerda; destruir o ambiente propício para a coalizão de forças democráticas avançadas, e desqualificar a própria esquerda pela utilização do método arquetípico de patrimonialismo brasileiro, a corrupção¿.

Garcia, que participa de um fórum de debates de filiados do PT no Rio, ressalta que o PT e a esquerda defrontam-se com uma derrota metapolítica e permitem que ¿a democracia e a reforma econômico-social, duas metas que excluem a corrupção, possam voltar a ser um atributo da direita com sua perspectiva perversamente modernizadora e elitista, que tantos prejuízos causaram à democracia-cidadania desde 1964¿.

Segundo ele, num país democrático, mesmo com todas as deficiências da democracia brasileira, não é possível implementar um projeto anticapitalista sustentável nem pela força, pela corrupção e o aparelhismo, nem pela supressão da democracia e das classes empresariais, ou por uma economia centralmente planificada, mas sim ¿partindo de um programa consistente que se mostre exeqüível e desejável pela maioria dos brasileiros, portanto eleitoralmente sufragável, induzindo-os a ultrapassar a barreira do medo e do conservadorismo¿.

Como se vê, o debate político do PT está retornando a um tempo em que o partido se preparava para assumir o poder com a intenção de fazer política de maneira diferente dos demais partidos. Ao contrário, no entanto, da sua origem, hoje o partido está dividido, perdeu substância e se defronta com uma campanha eleitoral onde as utopias deram lugar ao pragmatismo dos pacotes de obras eleitoreiras e dos programas assistencialistas. Pragmatismo que poderá levar Lula à reeleição ou a ser sepultado como responsável pelo desmoronamento do sonho petista.