Título: NOS ASSENTAMENTOS, OS DOIS LADOS DA MESMA BIOGRAFIA
Autor: Flávio Henrique Lino
Fonte: O Globo, 08/01/2006, O Mundo, p. 33

Com as notícias sobre o derrame de Ariel Sharon, duas imagens de sua longa carreira me vêm à mente, tão diferentes que parece impossível estarem na mesma biografia.

A primeira imagem é de uma noite de junho de 1974: num campo perto de Nablus, na Cisjordânia, uma centena de ativistas israelenses de extrema- direita acampados tentam estabelecer um novo assentamento. Seu objetivo é assegurar controle sobre o território e garantir que o governo centrista de Yitzhak Rabin não desista, em nome da paz, da terra habitada por palestinos. Por fim, soldados recebem ordem para retirar os ativistas, que gritam, os chutam e se agarram ao chão. No meio do embate, um tempestuoso Ariel Sharon, ex-general e membro recente do Knesset, urra: ¿Recusem ordens! Recusem ordens!¿

A segunda imagem é de um dia de agosto de 2005. Colunas de soldados e policiais israelenses marcham para colônias de Gaza para retirar moradores. Colonos gritam contra soldados, exigindo que se recusem a cumprir a ordem. O governo decidira que Israel não poderia continuar a ocupar a região. Liderando o governo está Ariel Sharon.

Comparando sua posições políticas, os dois homens parecem estranhos um ao outro. Um deles, um ousado rebelde tentando assegurar a terra. O outro, um estadista idoso declarando que para Israel continuar sendo um Estado judeu e uma democracia, precisa desistir daquele território. Mas por baixo dessas diferenças há um único Ariel Sharon. Sua carreira é unificada por sua personalidade. Como oficial e político, ele acreditou que exercendo poder, Israel poderia impor sua vontade e desenhar o mapa do Oriente Médio ¿ e que dentro de Israel, sua força de vontade pessoal moldaria a realidade. Outros oficiais e políticos de sua geração trataram a política para o Oriente Médio como um jogo de xadrez. Ele agiu como se fosse um problema do xadrez, sendo ele próprio o único jogador diante do tabuleiro.

No início dos anos 70, como chefe do Comando Sul do Exército, o general Sharon pôs fim a uma insurgência palestina em campos de refugiados de Gaza. Mais tarde, contou que uma arma crucial foi a máquina escavadeira, usada para abrir estradas, descobrir bunkers e derrubar cercas que combatentes usavam para se proteger. A escavadeira se tornou seu emblema, seu alter ego. Sharon também tentou rasgar a terra ocupada com ¿dedos¿ de assentamentos israelenses. Um deles separaria Gaza do Sinai controlado por israelenses.

Depois de a direita obter o poder em Israel, em 1977, Sharon se tornou o arquiteto de sua política de assentamentos, o homem que redesenhou o mapa do Oriente Médio. Estabelecendo dezenas de comunidades israelenses entre cidades árabes, novamente tentou fragmentar o território e impedir a independência palestina. Em enclaves que permaneciam entre os assentamentos, disse ele, Israel deveria impor uma autonomia palestina limitada ¿ estabelecendo unilateralmente o futuro político.

Talvez sua oferta mais ousada para remodelar a região tenha sido a invasão do Líbano em 1982. Na época ministro da Defesa, esperava não só destruir a Organização para Libertação da Palestina mas criar um regime libanês aliado a Israel. Em vez disso, Israel se viu num lamaçal que durou 18 anos.

A persistência finalmente o levou ao governo cinco anos atrás. Ele tentou romper a rebelião palestina com força militar e depois, surpreendendo a nação, decidiu que o futuro do Estado judeu dependia de ceder Gaza e parte da Cisjordânia. Ele determinaria as fronteiras definitivas de Israel removendo colônias e construindo uma cerca na Cisjordânia. Os objetivos mudaram; o método ¿ ação unilateral ¿ permaneceu.

A crença de Sharon na força de vontade lhe deu carisma. Ela tocou algo profundo na psique israelense: o desejo de pôr a fraqueza judaica no passado, de pôr fim aos dias em que judeus eram vítimas das decisões cruéis de outros povos. Ele foi o avatar da autodeterminação. Mas também demonstrou os limites da força, o fracasso do solipsismo político. Na verdade, não estava sozinho diante do tabuleiro de xadrez. Confrontado com a iniciativa de paz do líder egípcio Anwar Sadat, Israel corretamente escolheu desistir dos assentamentos no Sinai. A invasão do Líbano não pôs fim ao nacionalismo palestino. Sem o elemento diplomático, a retirada de Gaza não trouxe paz.

Os gambitos de Sharon não deram certo porque ele aprendeu metade das lições da História. Estava certo ao achar que Israel, como outras nações, precisa da arte do poder. Mas precisa também da arte das palavras, de negociações, compromissos. Agora, parece que Ariel Sharon está deixando o palco da política. Aqueles que o seguem devem compreender suas trágicas falhas.

GERSHOM GORENBERG é autor de um livro sobre assentamentos israelenses a ser lançado em março nos EUA