Título: A ESQUERDA ENTRE CHÁVEZ E A CHINA
Autor: ROBERTO MACHADO
Fonte: O Globo, 12/01/2006, Opinião, p. 7

As ciências sociais sempre se esforçaram numa tarefa árida: entender como se formam as ideologias. A natureza da questão impõe limites aos pesquisadores. Teses sobre ideologias são necessariamente feitas a partir de um ponto de vista - que é sempre ideológico. Apesar da dificuldade, o ressurgimento de uma espécie de bolivarismo na América Latina anda a exigir reflexão. Afinal, alguém precisa explicar como um coronel que tentou chegar ao poder num levante militar malsucedido se transformou, anos depois, na principal liderança de esquerda do continente, recebido com pompa e circunstância nos fóruns sociais mundiais.

Uma vez eleito pela via democrática, Hugo Chávez montou engenharias pseudo-institucionais altamente discutíveis para se manter no poder. As diferentes correntes do marxismo muitas vezes se dividiram entre ação revolucionária e aceitação das regras democráticas. Mas o método e a prática política de Chávez não podem ser classificados como revolucionários. Talvez o próximo Fórum Social possa responder à questão: por que a comida subsidiada de Chávez é revolucionária e o restaurante a R$1 de Rosinha Garotinho é populismo rasteiro? Na Índia, o governo de Jawaharlal Nehru, de inspiração socialista, criou institutos públicos de tecnologia há quatro décadas e hoje os indianos exportam softwares para os EUA. Enfrentam todos os problemas seculares de um país dividido em castas, mas não deixa de ser um primeiro passo.

Outra questão a ser investigada: por que a liderança de Chávez foi, em boa parte, estimulada pela animosidade de George Bush? A Venezuela não deixou de vender petróleo aos americanos. E, nos primeiros anos de governo, Chávez enfrentou forte crítica interna (não somente do empresariado) que o impediram naquele momento de se consolidar como liderança nacional. A desastrada ação externa dos EUA abriu espaço para o aparecimento de um antibush latino, lamentavelmente ocupado por uma liderança personalista e antidemocrática, que se afirma por meio de políticas sociais obsoletas, já testadas antes na AL. Esse tipo de assistencialismo precário, com fins eleitorais, esteve sempre acompanhado da piora da desigualdade social. Não contribui para a formação da cidadania, para a emancipação do indivíduo por meio da educação e da qualificação profissional.

Surfando na alta do petróleo, a Venezuela deve crescer 9% em 2005, mas com inflação anual acima de 15% desde 2003, retirando renda da população mais pobre. No Brasil, no auge da ditadura militar, em 1973, o crescimento foi o maior da história: 14%. Mas as conseqüências sociais do milagre econômico estão até hoje visíveis nas ruas: uma enorme parcela da população desprovida de quase tudo, com baixíssima escolaridade e sem esperança de ingressar dignamente no mercado de trabalho.

A esquerda latino-americana precisa observar com mais cuidado o que o Partido Comunista Chinês anda fazendo. Tem conseguido aumentar a renda e a escolaridade dos chineses via reformas pró-mercado e maciço investimento público em educação e formação profissional. O regime percebeu que precisava colocar os chineses na escola e criar as condições para que as oportunidades de trabalho apareçam com a entrada de dólares. Estradas e fábricas a iniciativa privada pode construir. Os resultados estão aparecendo. A China deve crescer 9,8% em 2005, repetindo o desempenho dos anos anteriores, com inflação de 2%. Lá, o desafio será outro, no futuro: sociedades informadas exigem cidadania plena. E democracia.

ROBERTO MACHADO é jornalista.

Receita do PC chinês: reformas, educação e formação profissional