Título: Uma guinada mais à esquerda
Autor: Renato Galeno
Fonte: O Globo, 15/01/2006, O Mundo, p. 36

SANTIAGO. Mulher, separada duas vezes e agnóstica, o perfil de Michelle Bachelet não seria o mais atraente para um partido que quisesse vencer a eleição num dos países mais conservadores do continente. Mas o que está chamando a atenção para um possível governo Bachelet, caso vença as eleições de hoje, é a esperança de uns ¿ e temor de outros ¿ de que o Chile dê uma guinada à esquerda.

Desde que a ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990) terminou, o poder no país esteve sempre nas mãos da Concertação, união de socialistas, sociais-democratas e democratas-cristãos. Porém, a delicada transição para a democracia ¿ Pinochet permaneceu no comando do Exército por anos, além de ter sido durante muito tempo senador vitalício, cargo só extinto ano passado ¿ fez com que a continuidade das políticas econômicas e sociais da ditadura fosse a marca dos primeiros anos de governo democrático. Os dois primeiros presidentes do país foram democratas-cristãos, Patricio Alwyn e Eduardo Frei, com o primeiro socialista, Ricardo Lagos, só chegando ao poder em 2000. Mas muitos consideram que só agora o Chile estaria suficientemente amadurecido para um governo de esquerda.

¿ Um governo Bachelet seria muito mais de esquerda do que o de Lagos. Não apenas por ela ser muito mais de esquerda do que ele, mas também porque a própria Concertação mudou. Hoje há um sistema de contrapesos, que deixará de existir caso Bachelet vença. Ela conquistou a maioria nas duas casas do Congresso. Além disso, o Partido Socialista tornou-se majoritário dentro da Concertação em relação à Democracia Cristã ¿ afirma Gonzalo Muller, diretor da Benchmark e do Departamento de Ciência Política da Universidade do Desenvolvimento, em Santiago. ¿ Hoje é preciso haver negociação prévia com a democracia-cristã e, depois, no Congresso, com a direita. Isso acaba com Bachelet.

Porém, segundo especialistas, uma guinada à esquerda tornou-se mais difícil depois de a candidata não ter conseguido vencer no primeiro turno. Ela foi obrigada a mudar seu estilo personalista e a procurar auxílio nos partidos da Concertação. Isso poderia conter uma das grandes promessas do início da campanha, que era uma renovação quase total nos primeiros escalões do governo.

¿ No primeiro turno, ela fez uma campanha totalmente separada dos partidos. Dizia que não era uma candidata política, mas que tinha sido imposta pelos cidadãos, através de pesquisas de opinião. Prometeu renovar os rostos da política no Chile. Nos 16 anos de governo da Concertação, há ao todo entre 200 e 300 pessoas que ocuparam os principais cargos, como ministros, embaixadores, líderes partidários. Essa elite política seria renovada. Agora tudo mudou ¿ afirma o cientista político Ricardo Israel.

Porém, outros continuam achando que Bachelet fará reformas significativas no Estado. Os sistemas de Saúde, Previdência e Educação estão entre os temas de deverão ser enfrentados pelo próximo presidente. Não há serviço médico gratuito no país, a não ser que se consiga um atestado de indigência. O cidadão deve ter um plano privado de assistência médica ou o plano governamental, que também é pago.

O governo Lagos criou um plano (Auge) que incluiu doenças que poderiam ser tratadas nos hospitais públicos, mas sua proposta de aumentar o número de patologias cobertas esbarrou na direita. O governo pretendia que parte dos recursos pagos a planos privados financiasse o plano estatal. Bachelet, que prometeu aumentar o número de doenças cobertas para 80, poderia tentar mudanças mais profundas que não foram feitas. Quanto à previdência, ela disse que a reformaria, mas não mudaria completamente o único sistema de capitalização exclusivamente privado do mundo. (R.G.)