Título: Conservador e arrojado, Chile país paradoxo
Autor: Renato Galeno
Fonte: O Globo, 15/01/2006, O Mundo, p. 37

Na economia mais desenvolvida da América do Sul, desigualdades entre homens e mulheres surpreendem

SANTIAGO. O Chile pode eleger hoje pela primeira vez em sua História uma mulher para a Presidência, se as pesquisas que indicam a vitória da socialista Michelle Bachelet estiverem corretas. Ela e seu adversário no segundo turno, o empresário Sebastián Piñera, encontraram-se em debates durante a campanha, mas legalmente não poderiam estar lado a lado no momento do voto, hoje, mesmo que morassem na mesma zona eleitoral. Num retrato do país que vive o paradoxo de ser uma das economias mais desenvolvidas do continente sul-americano e um dos Estados mais socialmente conservadores, homens e mulheres votam em seções eleitorais separadas.

¿ É ridículo. Trabalho tanto ou mais do que qualquer homem e, na hora de votar, tenho que ficar numa espécie de Clube da Luluzinha ¿ disse a vendedora de sanduíches Alejandra Luengo, de 43 anos, que comparou a situação ao regime do Apartheid na África do Sul. ¿ Isso parece aquelas fotos que a gente via dos negros separados dos brancos lá na África.

País tem níveis altos de homofobia, diz militante

Esse sistema de votação foi iniciado em 1935, quando mulheres conquistaram o direito ao voto. E jamais foi alterado. E muitos ainda acham que esta é a melhor forma de se votar.

¿ Estamos acostumados e, além disso, é mais organizado votar assim. Mulher com mulher, homem com homem ¿ diz Sergio González, de 47 anos.

Nem todos concordam. Movimentos de defesa dos direitos dos homossexuais afirmam que a medida provoca atos de violência verbal contra gays.

¿ Este é um país que ainda tem níveis alarmantes de homofobia, e isso se torna um problema quando pessoas que são biologicamente homens mas parecem ser mulheres vão para seções eleitorais masculinas ¿ disse Rolando Jimenez, presidente do Movimento de Integração e Libertação Homossexual. ¿ A grande maioria não se registra, não exercita seu direito de voto. E aqueles que estão registrados são ridicularizados por outros eleitores.

Mas o conservadorismo no país pode ser observado em muitos outros aspectos. O Chile foi o último país do Ocidente a aprovar a lei do divórcio, há menos de um ano. Ainda assim, a legislação aprovada ainda é uma das mais restritivas para que haja o divórcio.

Um dos motivos que levaram o país a demorar tanto para aprovar esta lei é o grande poder de influência da Igreja Católica. Um dos principais candidatos à Presidência, Joaquín Lavín ¿ que disputou o segundo turno com o presidente Ricardo Lagos em 1999 e quase chegou novamente à segunda rodada nesta eleição ¿ é integrante do grupo ultraconservador católico Opus Dei.

Mulheres são cerca de 30% da força de trabalho formal

Mesmo dentro da Concertação, coligação de partidos que governa o Chile desde o fim da ditadura (1973-1990), os valores religiosos ainda têm um papel importante. A liderança da Democracia Cristã, um dos partidos da Concertação, enfrentou uma rebelião interna para apoiar Bachelet, que é agnóstica. E parte de seus filiados votou na direita no primeiro turno.

Num país em que os povos indígenas não têm qualquer direito sobre as terras em que vivem ¿ e a direita esta semana rechaçou uma nova tentativa de conceder reconhecimento legal da existência destas populações ¿ as mulheres são pouco mais de 30% da força de trabalho formal.

São feitos 250 mil abortos clandestinos por ano no Chile, onde todas as formas de interrupção de gravidez são proibidas. Um terço das mortes de gestantes no Chile ocorre em abortos ilegais. Apenas 10% dos deputados e 5% dos senadores são mulheres.

Porém, o que costuma provocar mais choque em estrangeiros que visitam o país é o modo como uma grande parcela da população lida com o passado recente da ditadura militar de Augusto Pinochet. Foi somente nas cerimônias que marcaram os 30 anos do golpe, em 11 de setembro de 2003, que um quadro com a imagem de Salvador Allende ¿ presidente que morreu durante a invasão do Palácio de la Moneda ¿ pôde ser colocado na sede do governo. Quatro anos antes, a candidatura de Lavín, defensor de Pinochet, teve quase 49% dos votos no segundo turno contra Lagos.

Apenas nos últimos dois anos a figura do ditador Pinochet desapareceu como um ator no cenário político. Mas este fenômeno nada teve a ver com uma tardia reflexão da parte mais conservadora da sociedade sobre os crimes cometidos pelo regime militar. Foi a descoberta de contas secretas em bancos no exterior que deterioraram a imagem do ex-ditador.

¿ Quando era somente assassino, não havia problemas (para os conservadores). Mas agora que se descobriu que é também ladrão, ele se tornou uma figura decorativa ¿ critica o advogado Cristian Araya, de 33 anos. ¿ Assassino, tudo bem, mas ladrão, não pode.

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