Título: EXCESSO DE PODER
Autor: Merval Pereira
Fonte: O Globo, 18/01/2006, O País, p. 4

A portaria do Tribunal Superior Eleitoral que transfere à Secretaria da Receita Federal a fiscalização das eleições de 2006 pode inviabilizar o financiamento das campanhas eleitorais. Se por um lado as punições e a fiscalização serão maiores, o que inibiria o caixa dois, ela pode ter o efeito contrário ao desejado, ou seja, incentivar o caixa dois, pois as regras anunciadas impedem qualquer empresa de fazer doações oficiais, na opinião do deputado federal Francisco Dornelles, ex-secretário da Receita Federal. Ele lembra que no governo Figueiredo fez uma portaria que tratava do desembaraço aduaneiro de mercadorias.

Hélio Beltrão, que era ministro da Desburocratização, o procurou e disse: ¿Nós estudamos essa sua portaria por todos os ângulos, ela é perfeita. Todos os detalhes você imaginou. Mas eu vim lhe dizer que só contrabandista consegue preencher os requisitos. O importador normal não tem condições de cumprir. E eu revoguei a portaria¿.

A partir da portaria, o TSE vai enviar à Receita Federal, automaticamente, o nome de todos os doadores de campanhas eleitorais, independentemente de haver alguma irregularidade. E qualquer cidadão ou partido político pode fazer uma denúncia contra qualquer doador na própria Receita Federal, e não no Tribunal Eleitoral. Isso pode ser usado por inimigos políticos, adverte Dornelles. O normal seria que qualquer cidadão, verificando que um candidato ou partido político está cometendo ilegalidades, fizesse uma denúncia ao Tribunal Eleitoral.

O fato é que num regime em que existe o sistema de reeleição, na prática o que vai acontecer é que um órgão subordinado à Presidência da República vai fiscalizar as campanhas eleitorais dos adversários do presidente. Se a Receita considerar que é procedente a denúncia, a mandará para a delegacia fiscal onde o doador é domiciliado para ele ser fiscalizado. Além do mais, a resolução transforma qualquer denúncia em um fato político, a ser explorada no decorrer da campanha eleitoral.

Em termos práticos, enfatiza Dornelles, o TSE delegou ao Executivo a competência para fiscalizar a eleição, o que é uma distorção do processo. Se o TSE não tem pessoal suficiente para fiscalizar com o rigor necessário, ele tem poderes para requisitar à Receita Federal os técnicos necessários, que trabalharão sob o comando do Tribunal Eleitoral. Essa resolução dá à Receita Federal um poder extraordinário: um órgão subordinado a um candidato vai fiscalizar os doadores de seus adversários.

Segundo Dornelles, a Receita Federal, sendo um órgão de arrecadação e fiscalização, não precisa de competência do Tribunal Eleitoral para fiscalizar qualquer empresa, qualquer indivíduo, mas, assim como não pode fiscalizar problemas relacionados à educação, à cultura, ao meio ambiente, não pode também fiscalizar a eleição. A doação que uma empresa ou um indivíduo faz não é dedutível do Imposto de Renda, portanto não está na alçada da Receita. Ainda mais: na declaração de rendas, vão criar um campo específico para identificar doações de empresas a candidatos, bem como gastos realizados por eleitores. Isso é uma ¿verdadeira brutalidade¿, é colocar a Receita Federal exercendo uma função que é do Tribunal Eleitoral, reclama Dornelles.

Já existe a obrigação de o partido enviar para os TREs toda a relação das doações de campanhas eleitorais, identificando os doadores e as quantias doadas. Para Dornelles, a fiscalização da Receita a essas doações seria um pressuposto de que qualquer doação é ilegal. O máximo que poderia acontecer, ressalta Dornelles, é que o Tribunal Eleitoral, verificando uma grande doação, pedisse à Receita para verificar se aquela quantia corresponde a mais de 2% da receita bruta da empresa, que é o limite estabelecido pela legislação eleitoral. Se a empresa doar acima disso, estará fora da lei eleitoral, e não fiscal, e deveria ser punida por esse critério.

Dornelles levanta mais uma questão: se o Executivo federal fez esse acordo com a Receita Federal, um governador pode fazer o mesmo convênio entre a Secretaria de Finanças e o Tribunal Regional Eleitoral, e tirar dividendos políticos. A portaria 74, de 10 de janeiro, já está em vigor, não necessitando de aprovação do plenário do Tribunal Superior Eleitoral. O ministro Marco Aurélio de Mello já se pronunciou publicamente contra a medida.

Outros ministros alegam que além dos aspectos políticos da questão, há os aspectos jurídicos: o primeiro escalão da Justiça, que é o TSE, não poderia baixar uma portaria com o terceiro escalão do Executivo. A impressão é de que o próximo presidente do TSE poderá rever essas portarias, que o ministro Carlos Velloso, que está se aposentando, assinou sem consultar o plenário do TSE. Certamente ele ecoou os anseios da sociedade ao fazer resoluções que combatam o uso do caixa dois nas eleições. Mas acabou propiciando ao governo federal, que é o principal acusado das irregularidades, um controle das doações da campanha que pode ser usado politicamente. E dando à Receita Federal um poder excessivo, próprio de regimes autoritários.