Título: TENSÃO PRÉ-ELEITORAL
Autor: ROBERTO DaMATTA
Fonte: O Globo, 18/01/2006, Opinião, p. 7

Por motivos inconscientes, que os psicanalistas interessados nos eventos sociais podem desvendar com mais precisão e sensibilidade, nosso calendário eleitoral está sincronizado ao futebolístico, fazendo com que as eleições gerais ¿ chamadas muito apropriadamente de ¿casadas¿ ¿, nas quais estão em jogo e disputa cargos públicos básicos e o título emblemático e quase-real (ou se quiserem, surreal) de presidente do Brasil, coincidissem com um outro evento maior: a disputa do título de campeão do mundo de futebol.

A conjunção dos quadriênios eleitorais com os futebolísticos pode ser um sintoma de nosso entusiasmo pelas renovações e um sinal do nosso gosto pelas novidades. Juntamos futebol e eleição porque ambos são situações ritualizadas de disputa, competição e encontro perigoso entre as regras do jogo e os jogadores, juízes, patrocinadores e expectadores.

Mas a sintonia pode também ser o simples testemunho de que, para nós, o campo do ¿político¿ marca uma esfera distante e até mesmo divorciada dos eventos classificados como lazer, esse universo que encampa as festas populares e os campeonatos esportivos. Será que essa separação do político seria a revelação de como ele é venerado entre nós? De quanto dele esperamos como instrumento de resolução de nossos problemas?

Dessa idealização do campo político decorreria a nossa desilusão com a prática política (o jogo de forças deste campo), e com os seus jogadores: os ¿políticos¿ que, conforme mostram os inquéritos, são objeto paradoxal de nossos insultos e admiração.

Se o político é, de fato, idealizado e alvo de expectativas exageradas, explica-se por que juntamos, correndo o risco de termos de quatro em quatro anos um calendário explosivamente abarrotado de grandes eventos, futebol e eleição. É que, quando os legisladores estabeleceram as datas eleitorais, eles simplesmente esqueceram da Copa do Mundo. Pois do mesmo modo que em junho ou agosto não lembramos do carnaval que nessa época se torna um estranho para nós, quando legislamos sobre as eleições deixamos de lado as datas da Copa do Mundo.

O resultado é um bolo simbólico difícil de digerir. Sobretudo quando se faz a previsão de que o partido do governo tem um claro compromisso popular que o liga ao campeonato mundial de futebol como parte de sua estratégia eleitoral.

Quaisquer que sejam os planos, entretanto, o fato é que, de quatro em quatro anos, temos não só o peso das Copas do Mundo em junho, mas também o eletrizante e apaixonado combate eleitoral em outubro. São duas megacompetições regidas por normas igualitárias e abertas, numa sociedade de inegável viés anticompetitivo e hierárquico, sistema que jamais dispensou o ¿você sabe com quem está falando?¿, rito que permite distinguir os civicamente iguais, estabelecendo, em todos os campos, os seus maiorais, luminares, patrões e donos.

Se em todo o mundo as disputas engendram crises e destilam insegurança, imagine o que isso não provoca no nosso imaginário coletivo, marcado pelas gradações hierárquicas, onde os luminares e entendidos de plantão se arrogam o direito de tudo saber e prever. De fato, como não se sentir inseguro se a Copa do Mundo vai mobilizar aquele velho dilema brasileiro de ser ou não inferior diante dos adversários estrangeiros, todos necessariamente tidos como superiores, adiantados, organizados e fortes? O fato de sermos ¿penta¿ só serve para piorar a autopercepção negativa e aumentar a nossa responsabilidade. A mesma lógica do ¿quanto maior o pau, maior a queda¿ cerca a nossa cena eleitoral, para a qual os especialistas calculam uma disputa com reveses homéricos.

Como, pergunta-se inconscientemente em cada caso, entregar o ouro aos inimigos e aos bandidos? Como sair bem de uma disputa como perdedor quando se nela entrou como campeão? Por que, afinal de contas, temos essa coisa terrivelmente chata chamada eleição ou campeonato que não deixa os ganhadores ficarem para sempre com os títulos? Se somos pentacampeões, podemos recusar a participação e ficar no topo (e no poder) para sempre?

Essas são as questões que certamente povoam o nosso lado hierárquico. Ou melhor, essa é a perspectiva pela qual a nossa consciência, constituída pelos jeitinhos e pelos ¿sabe com quem está falando?¿, interpreta as competições esportivas e eleitorais. Para ela, a disputa que demole e renova as hierarquias é sempre indesejada e terrível.

Por isso nos armamos para vencer a qualquer custo e interpretamos a vitória do adversário ¿ aquele inimigo desgraçado ¿ como castigo, armadilha ou injustiça.

A tensão pré-eleitoral está sem dúvida marcada por uma visão primitiva e antidemocrática de poder. Pois para a mentalidade hierárquica dominante, só se entra na eleição, como disse o presidente Lula, se for para vencer. Eis uma opinião decidida e inocentemente contrária à disputa que, nos concursos igualitários ¿ como a copa e a eleição ¿, promovem uma tão (in)desejada rotatividade do poder.

ROBERTO DaMATTA é antropólogo.

Interpretamos a vitória do adversário como castigo, armadilha ou injustiça