Título: Penitência feita
Autor: Tereza Cruvinel
Fonte: O Globo, 19/01/2006, O GLOBO, p. 2
Encurtar o recesso e acabar com o duplo subsídio nas convocações extraordinárias era o mínimo que a Câmara poderia fazer para sair do atoleiro. Uma Casa já alvejada pela denúncia do mensalão provocou a ira da opinião pública ao permitir que os deputados recebessem em dobro, e sem trabalhar, nos últimos 30 dias. A autopunição corrigiu uma imoralidade mas não garante um Parlamento melhor. Para isso, continua faltando uma reforma político-eleitoral que qualifique a representação.
Neste momento, entretanto, era preciso uma penitência, e foi feita. A Câmara espelha todos os nossos defeitos mas tem, muito mais que o Senado e outras corporações, disposição para corrigir-se e punir os seus. Mas tem também compulsão para afundar no erro e só tratar de corrigi-lo quando o prejuízo já é grande. Agora, alguns deputados estão revoltados com a imprensa, acusando-a de ter insuflado a opinião pública contra os congressistas. O noticiário ateve-se a fatos que não podem ser desmentidos, como o não-comparecimento regiamente remunerado.
Quem não sabia que uma autoconvocação com pagamento extra, no curso de uma crise que atinge muito mais o Legislativo que o Executivo, daria no que deu? Só Aldo Rebelo foi contra, e acabou capitulando. Ainda em dezembro, o deputado Raul Jungmann apresentou seu projeto acabando com o subsídio extra. Não conseguiu pô-lo em pauta, o que só aconteceu quando o som da fúria subiu, neste começo de janeiro. Como se não bastasse, alguns ainda fizeram a pantomina das doações, algumas para ONGs amigas, outras que não se confirmaram.
A redução do recesso para 55 dias foi uma solução razoável depois da reação da maioria silenciosa contra um encurtamento de 90 para 45 dias. Aldo tem um estudo mostrando que o Congresso brasileiro agora terá um dos menores recessos entre os parlamentos ocidentais. Inocêncio Oliveira, relator da matéria, lembra que nos últimos 16 anos, só em 2002 o Congresso não foi convocado para trabalhar nas folgas de janeiro e julho. O Executivo é que criou o vício, acrescenta Renato Casagrande, líder do PSB. Espera que agora, com recesso menor, as convocações sejam menos freqüentes.
Uma boa medida introduzida na emenda foi a exigência de que as duas Casas aprovem a convocação, seja ela de iniciativa de seus presidentes ou do Executivo. A remuneração extra surgiu exatamente para atenuar a contrariedade dos parlamentares com as seguidas convocações do Planalto nas últimas décadas, que lhes prejudicava o descanso ou o trabalho na base, que existe mesmo ¿ e é preciso que exista. O vínculo com as comunidades atualiza a representatividade.
O fim das mordomias, entretanto, não garante maior eficiência parlamentar. Esta só virá com as reformas que eles não aprovam. Michele Bachelet acaba de ser eleita presidente no Chile, num processo político da maior importância para o continente. Sua coalizão fez maioria na Câmara e no Senado. Este ano, vamos eleger um presidente e, seja ele quem for, já sabemos: dificilmente terá maioria. Terá de fazer alianças, concessões, barganhas, sejam de que natureza forem, para governar. E ainda assim, com tantos e tão pouco coesos partidos, o processo legislativo será lento e quase sempre sujeito à influências das mais estranhas variáveis. O mensalão foi fruto disso.