Título: O QUE NOS FALTA É CAPITALISMO
Autor: CARLOS ALBERTO SARDEMBERG
Fonte: O Globo, 19/01/2006, Opinião, p. 7

Antigamente era fácil. Capitalismo era o regime da propriedade privada dos meios de produção, do capital. Socialismo, a propriedade coletiva, administrada pelo Estado.

Hoje parece mais complicado. Michelle Bachelet elegeu-se presidente do Chile pelo Partido Socialista. Evo Morales, da Bolívia, pelo Movimento ao Socialismo. Sendo evidentes as diferenças entre uma e outro, resulta que ¿socialismo¿ não designa nada nesses dois casos. Designará alguma coisa em algum lugar no mundo? A resposta é não, e a explicação, simples: o socialismo acabou, como realidade e como utopia.

Sobrou apenas o capitalismo, mais ou menos avançado, bem ou mal praticado. As utopias que restaram do socialismo visam apenas ao que se poderia chamar de melhoramento social do capitalismo. O Partido Comunista da China diz que está implantando lá a economia socialista de mercado. Os europeus falam há muito tempo de economia social de mercado. E por aqui na América Latina já se pensou numa economia popular de mercado. O objetivo, sempre, é dar uma desculpa pela adesão ao regime que se considerava exclusivo dos ricos.

Já capitalismo continua fácil de entender: é o regime da propriedade privada das fábricas, do capital e da terra, o sistema da livre iniciativa e das liberdades pessoais. Mas continua difícil de praticar, em boa parte por razões culturais. Amplamente dominada pela antiga esquerda socialista, a intelectualidade ocidental cravou a opinião de que o livre mercado, deixado solto, conduz à injustiça de uns serem ricos, outros pobres. Assim, é preciso corrigir o mercado com a intervenção do estado.

É o que distingue hoje os regimes ¿ a maior ou menor intervenção do Estado nas relações econômicas. E aqui a contradição: a cultura dominante sugere que, quanto maior a intervenção, mais justo o regime; a prática mostra que, quanto menor a intervenção, maior a capacidade de crescimento, isto é, a capacidade de gerar renda e emprego.

O Chile é o mais capitalista dos países da América Latina. A presidente Bachelet vai chefiar o quarto governo seguido da ¿Concertação¿, frente que reúne os Partidos Socialista e Democrata Cristão e outros menores. A política econômica se baseia no ajuste permanente das contas públicas (superávits há anos), metas de inflação (abaixo dos 3% anuais), câmbio flutuante, ampla privatização e enorme abertura ao comércio externo, com as mais baixas tarifas de importação.

O Chile tem acordos de livre comércio com EUA, União Européia, China e Índia, e é associado ao Mercosul. Globalizado, prepara-se para abancar ainda mais. Por exemplo: é meta do governo que, dentro de 15 anos, todos os chilenos sejam fluentes no inglês. E, recentemente, o governo introduziu um projeto piloto com o ensino de mandarim, o idioma oficial da China, em escolas públicas. A idéia é torná-lo obrigatório.

Bachelet não pretende mudar nada disso. Então, de onde viria seu socialismo? Dos objetivos de ampliar os programas sociais, incluindo os de proteção ambiental. Não é socialismo, claro, é apenas isso mesmo, preocupação social.

Já Evo Morales não tem a menor idéia do que vai fazer. Obviamente despreparado para assumir o governo, ele se encontrou primeiro com Hugo Chávez e Fidel Castro, para esculhambar o capitalismo e os EUA e prometer estatizações, mas também veio ao Brasil dizer ao padrinho Lula que vai proteger os ¿bons¿ investimentos privados, inclusive os brasileiros.

Eis aí, Lula, cuja eleição em 2002 deflagrou a onda vermelha, transformado em fiador dos investimentos privados. É engraçado.

Tudo considerado, ficamos assim: o que gera riqueza é o capitalismo e ponto final. Mas ainda persiste, por toda parte, o entendimento de que é preciso intervenção do Estado para corrigir as injustiças do capitalismo ¿ e isso é a esquerda de hoje.

O problema é que essa boa intenção coincide com a velha fisiologia, a prática de setores privados de ocupar o Estado para obter privilégios. O resultado é que as intervenções e regulamentações do Estado tendem a gerar ineficiência e injustiça.

Pensaram no Brasil? Acertaram. Não sobra neoliberalismo. Falta capitalismo.

CARLOS ALBERTO SARDEMBERG é jornalista.