Título: RUDIMENTAR, MEU CARO MARX
Autor: TITO RYFF
Fonte: O Globo, 19/01/2006, Opinião, p. 7

Paul Samuelson, Prêmio Nobel de Economia em 1970, conta, em seu famoso livro de introdução à economia, a seguinte história:

¿Max Planck, Prêmio Nobel de Física, teria dito, modestamente, que havia tentado se tornar economista, mas que a dificuldade da ciência econômica o havia desencorajado. Ao ouvir essa história, o pioneiro da lógica matemática moderna, Lorde Bertrand Russel, comentou: `Estranho, comigo aconteceu o contrário. Desisti de estudar economia porque a achei demasiado fácil¿.¿

A atual querela em torno da necessidade, ou não, de se manter um superávit primário da ordem de 4,25% do PIB parece dar razão a Bertrand Russel.

A dimensão do superávit é função do tamanho da conta de juros. Quanto mais altos os juros, maior o superávit primário necessário para impedir o crescimento da relação dívida/PIB. Com juros excessivamente altos, mesmo um superávit expressivo pode ser insuficiente para evitar o crescimento da dívida em relação ao PIB. E isso não só porque os juros altos incham a dívida, mas, também, porque encolhem o PIB.

Quando os juros caem, ocorre o oposto, ou seja, a dívida diminui e o PIB cresce, impulsionado pelo crédito mais barato que estimula o consumo e os investimentos. Com o crescimento do PIB, aumenta, mais do que proporcionalmente, a receita tributária do governo. Mais investimentos elevam a produtividade e ampliam a capacidade de produção, conferindo continuidade ao crescimento econômico. Quando isso acontece, o que deve fazer o governo? Reduzir o superávit primário, correndo o risco de manter em nível elevado a relação dívida/PIB, ou aproveitar o ciclo expansionista para acelerar a queda do estoque da dívida e empurrar a taxa de juros ladeira abaixo?

Vamos supor que o bom senso recomende a segunda opção. Alguns analistas parecem acreditar que, nesse caso, o governo terá que aumentar o superávit primário, comprimindo, ainda mais, suas despesas de custeio e de investimento. Nada mais falso. Basta recorrer à aritmética elementar para perceber que PIB, receita tributária, despesas de governo e superávit primário podem todos crescer simultaneamente e, ainda assim, proporcionar uma queda da relação dívida/PIB.

Para estabilizar a relação dívida/PIB, basta que a soma do superávit primário (expresso como percentagem do PIB) e da taxa de crescimento real do PIB iguale o impacto que os juros reais têm sobre o estoque da dívida. Se nossos juros reais baixarem para 10%, patamar cerca de quatro vezes superior ao da média mundial, e isso possibilitar uma elevação da taxa anual de crescimento do PIB para 4%, ainda bem modesta em relação ao potencial da economia brasileira, um superávit primário de 4,25% será mais do que suficiente para reduzir a relação dívida/PIB.

Mas o que recomendaria Max Plank como primeiro passo a ser dado na atual situação brasileira: reduzir juros ou aumentar o superávit primário? Certamente indagaria: o superávit primário é demasiado pequeno ou os juros estão excessivamente altos? A comparação internacional mostraria que nosso déficit nominal (superávit primário menos despesas com juros) não destoa do padrão europeu ou do que acontece na economia norte-americana. Já nossos juros parecem querer comer uma fatia sempre maior do PIB. O país convive, há mais de 10 anos, com juros reais superiores a dois dígitos, e com a garantia do Banco Central de que o fenômeno é passageiro. Enquanto isso, a taxa real média de juros de 40 países, a maioria nações emergentes com situação econômica mais precária ou vulnerável do que a nossa, gira em torno de 1,3% ao ano. Logo, o que parece estar fora da (nova) ordem mundial são os nossos juros. Continuando a pensar logicamente, Plank chegaria à conclusão de que um aumento do superávit primário (redução do custeio e do investimento do governo), com taxas de juros já tão altas, deprimiria mais ainda o PIB, o que poderia anular o resultado desejado de redução da relação dívida/PIB. Já a queda dos juros, ao contrário, impulsionaria o crescimento da economia, potencializando o efeito de redução do tamanho da dívida em relação ao PIB. Manteria o nível do superávit primário, até verificar qual o impacto que essa redução dos juros teria sobre o PIB e a inflação.

A essa altura, Max Plank estaria prestes a se reconciliar com a economia, ao perceber que a redução dos juros, ao promover o crescimento, tornaria possível aumentar o valor real do superávit primário. Desconfiado, porém, indagaria: se tudo é assim tão meridianamente claro, por que os economistas provocam tanta polêmica em torno de assunto tão banal? Descobriria, então, que os que defendem a manutenção de juros estratosféricos têm, sempre, uma ultima ratio. Antes, afirmavam que os juros altos eram necessários para estimular a entrada de capital financeiro indispensável para equilibrar nossas contas externas. O câmbio flexível, o saldo expressivo da balança comercial e a persistente entrada de investimento estrangeiro (mesmo passado o período da privatização) jogaram por terra esse argumento. Agora, afirmam que o descrédito do Estado brasileiro é de tal ordem que as autoridades monetárias não conseguiriam ¿rolar¿ a dívida pagando taxas de juros reais inferiores a dois dígitos. Ou, ainda, que taxas de juros muito altas são necessárias para manter baixa a inflação num país com forte cultura inflacionária como o Brasil. Isto é, haveria uma ¿maldição brasileira¿ que nos torna diferentes. Mas, aí, Plank já estaria adentrando o terreno movediço da economia política, no qual a aritmética não tem vez. Receio que tenha sido por essas e outras que Plank desistiu de estudar economia.

TITO RYFF é secretário de Planejamento do Estado do Rio de Janeiro.