Título: A MICHELLE
Autor: Verissimo
Fonte: O Globo, 19/01/2006, Opinião, p. 7

Não se deve ver coisas demais na Michelle. Já ouvi alguém chamá-la de ¿Linda!¿, mas devia ser um esquerdista brasileiro, sem muito com o que se entusiasmar ultimamente, num momento de descontrole. Para começar, quem ganhou as eleições no Chile foi a situação. A ¿Concentración¿, coalizão de centro-esquerda que apoiou Michelle, governa o Chile há anos. Não deve mudar muita coisa na política econômica do país que os neoliberais bradem como exemplo de sucesso na América Latina. O que é diferente, apenas curioso ou entusiasmante mesmo na Michelle depende da ordem em que você declinar seus atributos mais citados: socialista, mulher e divorciada agnóstica; mulher, socialista e divorciada agnóstica; divorciada agnóstica, socialista e mulher etc.

Se socialista é o mais definidor de tudo o que ela é, isso significa que os chilenos não quiseram apenas outro social-democrata no poder e que os problemas criados pelo modelo neoliberal, como crescentes concentração de renda e distância entre ricos e pobres, que conhecemos bem, agravam-se e pedem outro ¿aproxe¿. Também significa que, mantidos os contextos e as peculiaridades de cada um (ela não é exatamente o Evo Morales de tailleur), a eleição da Michelle faz parte da mesma reação que já elegeu ou está por eleger candidatos de esquerda em todo o quintal de Washington. Ninguém sabe se o novo ciclo vai saber desconcentrar renda. Está provado que os generais e os neoliberais não sabem.

O agnosticismo da Michelle não é irrelevante, ainda mais no Chile, em que, como na Argentina, a Igreja tem uma longa história de tutelagem política e é muito mais um agente político do conservadorismo do que, por exemplo, no Brasil. A maçonaria foi um veículo para a interferência da metafísica na política brasileira que a Igreja, com toda a sua força, nunca foi, enquanto que é impossível entender a história de Chile e Argentina sem conhecer o papel da Igreja. Pelo menos uma revolução cultural a Michelle já fez.

E o fato de ser mulher, e a primeira a governar o Chile, não é apenas uma curiosidade. Também pode ser o começo de um ciclo. Já tem uma alemã governando a Alemanha, uma liberiana governando a Libéria e fala-se muito na Hillary Clinton para presidenta. Aqui temos a Dilma Rousseff, a Yeda Crusius, a Heloisa Helena... E já abro o meu voto: Patrícia Pillar.