Título: LULA E `LOS HERMANOS¿
Autor: Merval Pereira
Fonte: O Globo, 21/01/2006, O País, p. 4
O grupo dos Três do Sul, como se auto-intitula a união selada entre Brasil, Argentina e Venezuela, vem sendo articulado nos bastidores há muito tempo, e parece que agora superou as idiossincrasias naturais dos três líderes regionais. O presidente Lula, que até chegar ao poder era a imagem do radicalismo político, transformou-se no grande conciliador e na melhor aposta de equilíbrio político na região, apesar de eventuais arroubos terceiro-mundistas de nossa política externa. Entre o antiamericanismo recorrente de Hugo Chávez, e as bravatas de Néstor Kirchner, Lula representa a liderança política mais sensata num continente dominado pelo esquerdismo, ao lado dos líderes da ¿Concertación¿ chilena, os socialistas Lagos e a presidente eleita Michelle Bachelet.
O Chile, com uma condução independente na América Latina, se coloca mais próximo do Primeiro Mundo do que de uma agenda sul-americana ¿de esquerda¿. Lula representa a esquerda democrática na América Latina, e é a única força política capaz de negociar com grupos de esquerda radical sem colocar em risco a estabilidade da região.
O presidente Lula costuma explicar a atuação de seu assessor especial Marco Aurélio Garcia como decorrente das relações que o PT sempre teve com os grupos de esquerda da América Latina, que agora estão gradativamente chegando ao poder na região. Por isso, Lula se sente responsável por fazer a ponte entre os Estados Unidos e a Venezuela, embora discorde da política de Chávez de viver se confrontando com os EUA. Se interferir pessoalmente junto a Bush para liberar as vendas de aviões da Embraer com tecnologia americana para a Venezuela, não terá sido a primeira vez.
Já advertiu Bush, em uma conversa telefônica desaconselhada pelo Itamaraty, que é fazer o jogo de Chávez ficar atacando-o. Foi a respeito de um artigo que a secretária de Estado Condoleezza Rice havia escrito com críticas à Venezuela.
Lula diz que, embora tenha razão ao separar as esquerdas latino-americanas entre o populismo e líderes como ele, Lagos e Bachelet, o ex-presidente do governo espanhol Felipe González precisa entender o contexto interno de cada país. Diz, por exemplo, que o presidente eleito da Bolívia Evo Morales carrega uma carga excessiva de pobreza no país e precisa de resultados, mas tem a cabeça no lugar.
Para ajudar o líder indígena recentemente eleito, Lula pensa sugerir a Bush que os Estados Unidos, em vez de gastarem fortunas no combate ao narcotráfico na região militarmente e sem resultados, adotem uma postura de cooperação: comprar pelo dobro do preço a produção de coca da Bolívia, para queimar publicamente. Agindo assim, os EUA estariam esvaziando a tensão que a presença militar na Colômbia provoca em seus vizinhos.
Com relação a Chávez, Lula lembra que ele só não foi derrubado graças à intermediação brasileira criando o grupo dos ¿amigos da Venezuela¿, incluindo os Estados Unidos, acusado por Chávez de ser o mentor do movimento golpista. As ações conjuntas de união da América do Sul têm base em uma série de estudos desenvolvidos na Escola Superior de Guerra, onde um grupo composto das mais diferentes tendências políticas se reuniu no Centro de Estudos Estratégicos para discutir um projeto de país.
Faziam parte desse grupo o atual secretário-adjunto do Itamaraty, Samuel Pinheiro Guimarães, e Darc Costa, ex-vice-presidente do BNDES na gestão de Carlos Lessa, que defendeu uma tese de doutorado sobre a cooperação sul-americana como caminho para a inserção internacional do Brasil. No governo, transplantaram essas idéias para o centro das decisões.
Diversas vezes a tese, e projetos como o gasoduto ligando toda a região, foram debatidos na Argentina e na Venezuela. Os projetos de integração regional, não apenas física, como política, econômica, cultural e até mesmo militar, partem do pressuposto de que é preciso criar condições para passar da periferia para o centro do mundo, passar da barbárie à cultura, num processo histórico que vem se repetindo com relação às grandes potências.
A união pode gerar projetos importantes para a região, como a empresa de energia comum, ou o banco de desenvolvimento regional. A Argentina afinal parece ter se convencido de que só se pode trabalhar a América do Sul por meio de um entendimento claro entre as duas maiores economias. A América do Sul, por mais institucionalizada que esteja, com o Brasil de um lado e a Argentina de outro, perderia sua importância política.
O projeto de maior potencial político, e também capaz de gerar mais desentendimentos com os Estados Unidos, é o da união no setor de energia e petróleo. O chamado ¿gasoduto do sul¿, por exemplo, é um dos projetos mais importantes do Núcleo de Assuntos Estratégicos da Presidência, chefiado por Luiz Gushiken. A perspectiva para a segurança energética dos Estados Unidos, segundo alguns analistas, é incerta na melhor das hipóteses, e as reservas de gás e petróleo da América Latina podem ser essenciais nessa situação de demanda crescente e incerteza econômica.
A Venezuela, considerada ¿uma outra Arábia Saudita¿, é vista como uma das responsáveis pelos preços altos do petróleo no mercado internacional, pois é com os petrodólares que Chávez financia seus projetos sociais e sua influência política na região.
A América Latina, por outro lado, tem cerca de 8 trilhões de metros cúbicos de gás, e nesse campo o Brasil é um parceiro importante, pela influência que tem tanto na Bolívia quanto na Venezuela. O peso político da região aumenta pela capacidade de influência na estabilidade do mercado internacional de energia.