Título: COTAS E CRACHÁS
Autor: CRISTOVAM BUARQUE
Fonte: O Globo, 21/01/2006, Opinião, p. 7

OBrasil tem discutido o significado da adoção de cotas para negros. Porém, ninguém está discutindo a adoção de crachás, necessários para quem quer entrar em um dos campi da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Universidade esta que, como várias outras, consolida os muros que separam os campi do resto da sociedade. Foi preciso o crachá ser adotado para que O GLOBO abordasse o assunto.

Há anos, temos discutido se as cotas vão aumentar ou diminuir o preconceito racial; se provocam ou não uma queda na qualidade do ensino; se asseguram um direito negado há séculos aos negros ou se tiram o direito conquistado pelos candidatos brancos que conseguem notas melhores. Mas não se discute se a exigência de crachás reduz a violência dentro dos campi ou se legaliza a apartação brasileira.

As cotas e os crachás são dois fatos de uma mesma filosofia tradicional no Brasil: resolve nossos problemas por arranjos e não por reformas. Preferimos trocar de vergonhas, em vez de acabar com elas. No lugar da vergonha de não termos negros na elite brasileira, criamos uma vergonha menor, a necessidade de cotas para negros; no lugar da vergonha de sermos um país onde os campi estão sujeitos à violência, usamos crachás.

O crachá é necessário em um país que não enfrenta com vigor o problema da violência: não se implanta uma polícia eficiente, não se institui um sistema judiciário imparcial e rápido, não se pune criminosos com o rigor devido e, sobretudo, não se enfrenta o problema fundamental da injustiça que divide os brasileiros entre incluídos e excluídos. Da mesma forma, as cotas são um instrumento necessário em uma sociedade que mantém a marca do racismo por ser um país meio africano com uma elite de cara branca. Mas essa mesma sociedade não cria as condições para que todas as suas crianças consigam concluir o ensino médio independente da classe, da raça, da cidade.

O Brasil dos arranjos, dos jeitinhos, dos dribles, é o país dos crachás e das cotas.

Do ponto de vista administrativo, a universidade tem justificativa para as cotas e os crachás porque está administrando o presente. Mas, a longo prazo, para criar um sistema social eficiente e justo, o Brasil deve enfrentar os problemas na profundidade que eles exigem para evitar esses dois absurdos necessários: as cotas e os crachás.

Isso não é feito porque o Brasil ainda é um país imperial e o debate se dá entre os que fazem parte de uma minoria que se une mesmo quando diverge. Os defensores das cotas se chocam com os que são contra, mas ambos se unem na defesa dos crachás. As cotas para negros é um assunto que divide os que terminam o ensino médio, o terço mais educado da população, por isso ele é debatido. A instituição dos crachás é um assunto que separa os que estão na universidade de todos os que não entraram nela. O terço de cima separado dos dois terços de baixo da população.

A solução definitiva para os dois problemas é um ensino básico de qualidade da primeira infância até o fim do ensino médio. Com isso, entrariam nas universidades os que fossem mais competentes, por concurso, e certamente haveria um grau muito reduzido de violência, acabando o medo daqueles que entram no campus sem serem parte dele.

O caminho é implantar a anticota: garantir condições para que todos terminem o ensino médio com qualidade, independentemente de raça, classe social, cidade onde nasceu e vive. Só o tratamento da educação básica como um problema federal e com o mesmo empenho que se institui cotas e crachás é que torna possível resolver essas duas vergonhas. Isso exige que a educação básica seja nacionalizada, como foram nacionalizados o ensino superior, o Prouni e as cotas para negros. Isso tomará um prazo de pelo menos 10 anos, mas seu início não pode esperar nem 10 meses.

Não há como ficar contra as universidades que usam cotas e crachás como necessidade imediata. Mas é preciso destacar que a comunidade acadêmica se acomoda com esses instrumentos como solução definitiva, sem lutar pela solução do problema que os causam. Preferem cotas e crachás à anticota da universalização dos direitos da educação básica com qualidade.

CRISTOVAM BUARQUE é senador (PDT-DF).