Título: O DONO DA MÚSICA
Autor: FERNANDO BRANT
Fonte: O Globo, 22/01/2006, Opinião, p. 7

Há alguns anos, eu e um dirigente de bolsa de valores falávamos de música e da eterna luta dos autores na busca do reconhecimento de seus direitos. Segundo o simpático financista, a música só deveria render para o autor durante, no máximo, cinco anos. Depois, ela seria de todos, do povo. Argumentei com ele que até concordaria com a tese, se ele também considerasse que todos os seus bens ¿- imóveis, ações e carros ¿- fossem também de todos ao fim do mesmo período. Socialista com a minha propriedade, ele era capitalista com o que lhe pertencia.

É esse pensamento torto que está por trás da proposta do senador Paulo Octávio (PFL-DF) e do ex-senador João Capiberibe, que querem isentar os donos de salas de cinema do pagamento dos direitos das músicas que tocam nos filmes que eles exibem. Parecem não perceber que a música, o livro, a fotografia e toda obra artística pertencem aos seus criadores.

O direito autoral é um direito de propriedade, garantido pela Constituição e por tratados e convenções universais.

Seria, no caso, a mesma coisa que, em nome de problemas habitacionais em Brasília, algum congressista propusesse que hotéis, shoppings e prédios do conceituado senador lhe fossem tomados e entregues a quem deles necessitasse.

No mundo inteiro, e também em nosso país, quem promove a execução pública de música paga pela sua utilização. Assim, a televisão paga pelas canções que executa, o rádio idem e também os shows. No cinema, quem paga os direitos autorais musicais é o dono da sala de exibição. Isto está previsto na Constituição, na lei e nos tratados internacionais referendados pelo Brasil.

Tanto que, em 1988, os exibidores cinematográficos fizeram acordo com o Ecad (o escritório que representa todos os músicos, intérpretes e compositores) e concordaram em pagar o percentual de 2,5% do preço do ingresso.

Na planilha de preço eles colocaram essa despesa. Em meados de 1989, eles pararam de pagar (mas não deixaram de cobrar os 2,5% nos ingressos). Confiavam, certamente, na morosidade da Justiça e nos caros escritórios de advocacia que têm sob contrato.

A Justiça realmente tardou. Mas não falhou. Quatorze anos passados, em 2003, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) condenou, definitivamente, os exibidores a pagar os direitos autorais musicais devidos, no passado, no presente e no futuro.

Em vez de se sentarem para negociar o débito passado e começar a pagar pelo que usam no presente, eles foram ao governo e ao Congresso. Convenceram alguns senadores a apresentar um projeto de lei (o PL 532), que é uma afronta aos direitos dos compositores, à Constituição, aos acordos assinados pelo país e ao STJ.

Querem mudar a lei, para que os exibidores não precisem pagar pelo uso da música no cinema, passando por cima da necessária autorização dos autores. Além de ser uma agressão aos autores e aos seus direitos, a audácia do projeto vai mais longe: fere uma cláusula pétrea da Constituição brasileira.

Nossa Constituição diz, no artigo 5º, XXVII, que ¿aos autores pertence o direito exclusivo de utilizar sua obra¿. Isso quer dizer que ninguém pode utilizar uma obra sem autorização prévia do autor. E esta é uma cláusula pétrea, não pode ser modificada. É o que diz o artigo 60, IV, de nossa lei maior: ¿não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir os direitos e garantias individuais¿. Se não se pode nem deliberar a proposta de emenda constitucional, muito menos se poderá discutir o assunto em projeto de lei.

Para mudar essa norma da Constituição e retirar dos autores o legítimo direito de propriedade sobre o que eles criam, somente seria possível se fôssemos novamente condenados a viver em uma ditadura. Deus nos livre. Sei que não é isso que o Senado quer.

Alguns autores estiveram em Brasília conversando com senadoras e senadores, esclarecendo a questão. Confiamos que o bom senso vai imperar e a música brasileira vencerá mais essa batalha.

P.S.: estivemos, os autores, hospedados em um dos belos hotéis do senador Paulo Octávio. Pagamos, como é de direito, pelo uso de sua propriedade.

FERNANDO BRANT é compositor.

João Ubaldo Ribeiro volta a escrever neste espaço em fevereiro.