Título: O DIA EM QUE GARRINCHA CHOROU NO CAMPO
Autor: MACIEL DE AGUIAR
Fonte: O Globo, 22/01/2006, Opinião, p. 7

São coisas que só acontecem ao Botafogo e ao estado do Espírito Santo.

iiiiiiMenino ainda, torcia para não virar botafoguense diante daquele extraordinário elenco: Didi, Nilton Santos, Garrincha... E olha que o Vasco era o Expresso da Vitória ¿ foi duro.

Não, não tinha aparelhos de TV nos idos de 50, era tudo romanticamente ouvido no rádio, na distante Conceição da Barra. Imaginava os dribles intangíveis do gênio das pernas tortas e indagava: como pode alguém, com as pernas feito um bambolê e a bacia deslocada, fazer coisas mirabolantes?

Pior: ao vê-lo, no Maracanã, já em fim de carreira, observei que as mágicas pernas eram vergadas para um lado. Aí, tive que refazer os dribles na memória. Reconstituir Coronel, Bigode, Orlando e Bellini batendo cabeça. E suas pernas bailavam desafiando a anatomia, a ortopedia e a lei da gravidade pela linha imaginária dos gramados dos meus sonhos de menino.

Se tivesse uma religião seria a das pernas do Garrincha. Iria adorá-las e reverenciá-las pelos santos e abençoados dribles nos ¿joões¿. Os argentinos não criaram uma religião para o Maradona? Por que não criamos outra para as pernas do Garrincha? Tadinho de Maradona com aqueles driblezinhos previsíveis, aquelas perninhas certinhas e bem torneadas... Estou falando de coisas imprevisíveis, sagradas, míticas, que fizeram a realeza sueca, em 1958, curvar-se às suas chuteiras; depois no Chile, em 1962, a sagração.

Em São Mateus, no Norte capixaba, em 1980, a prefeitura municipal contratou a ¿seleção¿ da Agap-RJ para enfrentar o escrete local. A principal atração, lógico: Mané Garrincha. Gritei feito louco e até esqueci as vicissitudes da província...

No dia do jogo, o nosso Garrincha chegou com a perna fraturada e foi gessado pelo médico Ericson Peçanha, no Hospital Maternidade. Humano e gentil, fez questão de cumprimentar todos os doentes, mas estava fora do ¿clássico¿.

¿ Como assim? ¿ indagou o prefeito. E tomou uma decisão surpreendente:

¿ Arranjem umas muletas para ele entrar em campo, caso contrário não pago...

E assim foi feito ¿ providenciaram duas muletas e o gênio das pernas tortas, o deus dos dribles sublimes, a alegria do povo, entrou no gramado se apoiando num só pé, sob aplausos dos torcedores, e ainda fez pose para os fotógrafos.

Aproximei-me e vi que Garrincha chorava... Paralisado, assisti àquela cena insólita. Olhei-o com um misto de dor e desespero.

MACIEL DE AGUIAR é escritor. E-mail: memorialeditora@terra.com.br.