Título: A ESQUERDA EM XEQUE NO FÓRUM SOCIAL MUNDIAL
Autor: Soraya Aggege
Fonte: O Globo, 22/01/2006, Economia, p. 31

Debate na Venezuela pode se transformar em instrumento de pressão sobre governos recém-eleitos, dizem analistas

SÃO PAULO. Mais político que nos anos anteriores, o Fórum Social Mundial (FSM) começa terça-feira em Caracas, na Venezuela, território do polêmico presidente Hugo Chávez, ainda sob o calor das recentes vitórias eleitorais da esquerda na América Latina. Observadores mais críticos do encontro afirmam que esses fatores podem dar ao fórum um tom excessivamente caliente ¿ com posturas que terminem produzindo uma caricatura da esquerda. Há também o risco, dizem, de o FSM cair no governismo exacerbado. Para outros, o evento poderá ser o mais crítico de todos os fóruns sociais, e se transformar num movimento que exerça pressão sobre governantes latinos de todas as cores políticas.

¿ Haverá uma grande reflexão no fórum. Será que a prática de hoje combina com o discurso anterior dos nossos chefes de Estado mais à esquerda, como Lula ou Tabaré Vazquez (presidente do Uruguai)? Como será que Evo Morales (da Bolívia) governará? Como será o país de Chávez, com um Parlamento sem oposição? Será feita muita crítica. E é por isto que os governos mais à esquerda fazem questão de marcar presença por lá, mesmo que com representantes ¿ disse o empresário Oded Grajew, fundador do FSM e membro do chamado Grupo Facilitador do encontro.

`Enfrentar o Fórum Social não é fácil¿, diz organizador

Ex-assessor do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, Grajew acredita compreender os motivos do cancelamento da visita de Lula ao FSM. Segundo ele, o público do encontro é muito crítico, politizado e imprevisível.

¿ Os governantes têm mesmo que analisar a relação custo-benefício. Enfrentar o Fórum Social não é fácil. As pessoas são muito críticas e diversas. Eles sabem que o resultado de sua visita é imprevisível. Mas, para nós, sua ausência não muda nada. A participação de governantes ocupa 1% dos nossos debates, não focamos nossa ação neles ¿ afirmou.

Outro membro do Grupo Facilitador, o sociólogo Cândido Grzybowsk, diz que a nova configuração política dos governos latino-americanos surpreendeu até os organizadores do fórum.

Por isso, segundo ele, haverá uma grande ¿tensão criativa¿ e debates muito calorosos no evento, devido a esse novo mosaico político que surge no continente.

¿ Embora o FSM tenha contribuído para esta mudança, não nos preparamos para a novidade, estamos muito surpresos. E nós somos, na verdade, um leque enorme, que abriga desde anarquistas até a esquerda clássica ¿ disse ele.

Cientista político especializado em assuntos de paz e segurança internacional e diretor do Centro de Estudos da América da Universidade Cândido Mendes, Clóvis Brigagão faz uma análise diferente. Para ele, o FSM passou a sofrer do que chama de ¿infantilismo da esquerda¿. ¿ O Fórum Social Mundial é uma expressão do desejo de mudanças. Tem propostas radicais e estava dentro do espectro dos debates. Já esta edição na Venezuela marca uma radicalização. O fórum está sofrendo de uma doença, a chamada infantilização da esquerda, como alertou Lênin. Desvirtuou o debate, assumindo um papel político ¿ disse.

Papel do Brasil é no centro, diz analista

Brigagão avalia ainda que as recentes eleições de personalidades políticas como Evo Morales, presidente eleito da Bolívia, e Michele Bachelet, primeira mulher presidente do Chile, deixam um cenário muito indefinido na América Latina, colocando o Brasil mais ao centro.

¿ Eles têm uma inclinação mais à esquerda, mas com muita variação de graus. Isto repercute na relação com os Estados Unidos e no papel do Brasil. O Brasil fica com uma responsabilidade maior e será cada vez mais chamado à cena ¿ disse ele.

Ainda segundo Brigagão, o acirramento dos ânimos no FSM é previsível.

¿ O fórum será, digamos, uma coisa realmente bem caliente. E o Brasil é o pêndulo desse relógio que aparece agora na região. O Brasil aparece mais ao centro. Mais à direita fica o Chile, que embora se aproxime mais, é também o mais conservador. Mais à esquerda ficam Venezuela, Bolívia, Uruguai, talvez o Peru no futuro. O Brasil terá que manter o equilíbrio. Se formos muito à esquerda, enquanto América Latina, será um desastre. Este nacionalismo militar de esquerda do Chávez é perigoso demais ¿ disse o cientista político, frisando que os Estados Unidos também precisam mudar sua perspectiva de considerar a América Latina como ¿seu quintal¿.