Título: ELAS SE CASARAM COM O PODER
Autor: Dorrit Harazim
Fonte: O Globo, 22/01/2006, O Mundo, p. 34

Tendências políticas diversas marcam 11 mulheres governantes nos 5 continentes

Quando a recém-eleita Michelle Bachelet tomar posse na Presidência do Chile em março, chegará a 11 o número de mulheres no topo do poder político mundial. Considerando-se que são 182 os países governados por presidentes ou primeiros-ministros do sexo masculino, 11 mulheres é coisa pouca. Mas já dá para formar pelo menos um time de futebol. E com duas reservas de peso esquentando o banco para 2008: Hillary Clinton e/ou Condoleezza Rice. Caso Hillary ou ¿Condi¿ venham a assumir a chefia dos EUA, com tudo que a Casa Branca tem de emblemático, o mundo poderá passar a se ocupar de aspectos bem mais interessantes da questão que envolve gênero e poder.

Na verdade, o placar meramente numérico ¿ 11 a 182, neste início de 2006 ¿ quer dizer muito pouco. O que vem mudando radicalmente é a variedade de carreiras e caminhos das mulheres que chegam ao topo do poder político nos cinco continentes. Do time atual, apenas Begum Khaleda Zia, há quatro anos primeira-ministra de um dos países mais desvalidos do planeta ¿ Bangladesh ¿ ainda preenche o currículo clássico de herdeira por viuvez. Após o assassinato de seu marido-presidente em 1981, Zia foi sendo catapultada até o topo para prolongar a vida política dos correligionários do falecido. É também a única entre as líderes mundiais eleitas a não ter formação universitária.

A filipina Gloria Arroyo, reeleita presidente em 2004, também tem parentesco com o poder ¿ é filha de ex-presidente ¿ mas chegou lá com bagagem de economista formada pela universidade americana de Georgetown, onde foi colega de Bill Clinton. Coube-lhe o dissabor de ter de lidar publicamente com uma pulada de cerca do marido, fotografado em tórrido embate com uma assistente. Foi assim que José Miguel Arroyo, conhecido no país como ¿First Gentleman¿ (primeiro cavalheiro) à falta de designação melhor, saiu do anonimato no qual costumam tocar suas vidas os maridos de outras damas no poder.

Maridos professores continuam na ativa

O marido de Vaira Vike-Freiberga, por exemplo ¿ a presidente da Letônia que consegue manter um índice de aprovação de 80% em seu segundo mandato ¿ é professor de ciência da computação e continua a dar aulas. O companheiro de Helen Clark, eleita primeira-ministra da Nova Zelândia pela terceira vez, também é professor na ativa, de sociologia da medicina.

O parceiro de Tarja Halonen, a chefe de governo da Finlândia que no próximo domingo tentará se reeleger num segundo turno apertado, é jurista de renome. Mantinha uma relação conjugal com Tarja há mais de 15 anos mas aceitou se casar depois da posse da mulher, em 2000, para evitar estranhamentos de protocolo em viagens oficiais ao exterior. Na Finlândia, um dos países mais tolerantes em questões sociais, ninguém tentou inventar um termo para designar o masculino de primeira-dama. O nome do homem é doutor Pentti Arajarvi, ponto.

Passados mais de 15 anos desde que a primeira-ministra britânica Margaret Thatcher pegou a bolsa, saiu de cena e entrou para a História, novos espaços foram se abrindo com naturalidade para mulheres decididas a competir na arena política. O Estado insular de São Tomé e Príncipe, próximo à costa do Gabão, com menos de mil quilômetros quadrados de território, população de 120 mil almas e meros 30 anos de vida como país independente, já elegeu duas mulheres premieres em apenas 14 anos de eleições livres. Semana passada, foi a vez de a Libéria zerar o atraso e empossar a economista Ellen Johnson-Sirleaf, formada por Harvard, como primeira presidente da nação fundada há 158 anos.

Mas foi a recente vitória de Angela Merkel sobre o chanceler Gerhard Schroeder para comandar a Alemanha que implodiu de forma radical o já desgastado estereótipo de lideranças dos sexos. Na campanha de 2002 os tablóides alemães se atropelaram para tentar descobrir a exata cor da tintura com que o chanceler combatia a idade. Em 2005, o flagrante-sensação foi uma foto da candidata Merkel durante pescaria com o marido: ela vestia um camisão listrado e calça imensa, com cordão na cintura, e calçava um par de tênis comprado em supermercado. Foi considerado um horror pior do que o histórico de quatro casamentos de Schroeder.

¿ A meu ver o episódio mostra o quanto ela é honesta ¿ disse o fotógrafo Laurence Chaperon, que apostou na sua vitória. ¿ Por acaso deveria pescar de terno Armani?

Apostou certo.

Merkel foi casada, descasada, casou-se novamente com um professor quase invisível e, sobretudo, não tem filhos. Bachelet foi casada, teve dois filhos, descasou-se, teve outra filha e tomará posse em 27 de março no Palácio de la Moneda como presidente solteira. Condoleezza Rice, caso venha a se eleger para a Presidência dos EUA, vai se tornar, de uma tacada só, a primeira mulher, negra e solteira sem filhos a ocupar a Casa Branca. É bom o mundo e sobretudo o cerimonial do poder irem se moldando às escolhas de vida feitas por mulheres que assumem a liderança de nações.

É dos EUA, naturalmente, que brotam as idéias mais estapafúrdias para designar eventuais parceiros presidenciais no futuro, e ¿primeiro adjunto social¿ é apenas uma delas. E se for eleita uma mulher que optou por conduzir sua vida sozinha? ¿Ginger Rogers fazia exatamente as mesmas coisas que Fred Astaire, só que o fazia de salto alto e dançando de costas¿, diria a sempre afiada ex-governadora do Texas Anne Richards.

É neste cenário de mutação comportamental da sociedade que Hillary Clinton está procurando fazer uma travessia inédita. Durante os anos em que Bill Clinton ocupou a Casa Branca, ela tentou se adequar ao papel de primeira-dama reverenciado pelos americanos. A marca de suas antecessoras mais ilustres era forte, e tornar-se uma first lady com estilo próprio tornou-se obrigatório. Edith Wilson entrou para a História como protetora, Eleanor Roosevelt como os olhos e ouvidos da nação em guerra, Jackie Kennedy introduziu glamour, Nancy Reagan foi a confidente mais leal.

Hillary sobreviveu, aos trancos e barrancos, mas conseguiu o que nenhuma outra sequer tentou: tornou-se a primeira mulher de presidente dos EUA a criar uma base política própria. No caminho, amealhou mais inimigos que admiradores mas conseguiu fazer a travessia de primeira-dama humilhada por uma estagiária atrevida a senadora por Nova York. E de senadora a mais forte candidata democrata à sucessão de George W. Bush em 2008.

Definitivamente, gênero e poder político têm sotaques novos. Merkel fez um discurso de vitória que durou quatro minutos ¿ tinha mais coisas a fazer do que discursar. Bachelet chegou para votar dirigindo o próprio carro, com mãe e filha a bordo. Condoleezza desfez um casamento já marcado com um jogador de futebol americano e não dá o menor sinal de ter se arrependido. E Hillary começa a usar o marido apenas na medida que lhe convém.

Em meio a esta notável acomodação de terreno, já há quem acredite ser mais vantajoso para uma candidata apresentar-se sozinha do que mal acompanhada. A ser verdadeiro, pode vir a afetar a força de muitas candidaturas ¿ seja nos EUA ou no Brasil. Interessante.