Título: Desonrada
Autor: Míriam Leitao
Fonte: O Globo, 24/01/2006, Economia, p. 22

Nunca ficou tão clara a hipocrisia das Nações Unidas quanto no caso divulgado no último fim de semana: a ONU decidiu cancelar a entrevista de uma paquistanesa vítima de estupro coletivo. Mukhtar Mai estava sendo apresentada como ¿a mulher mais corajosa da Terra¿, mas a entrevista acabou cancelada porque o primeiro-ministro do Paquistão estava visitando a ONU e não se queria constrangê-lo.

Ela falaria na TV da ONU, mas, na véspera, a instituição mandou informar que a entrevista ficaria para melhor oportunidade, porque isso poderia incomodar o primeiro-ministro paquistanês, Shaukat Aziz, em visita às Nações Unidas.

A notícia correu mundo imediatamente porque agora a jovem pobre de uma aldeia remota do Paquistão já é uma celebridade. Mukhtar estava indo à ONU depois de participar, em Paris, do lançamento do seu livro ¿Desonrada¿, em que conta, no texto escrito por uma jornalista, seu caso, dramático, repulsivo e, infelizmente, comum.

Mukhtar Mai viveu uma das mais chocantes histórias de violência contra a mulher jamais divulgada. Ela foi condenada pela Jirga, a corte tribal, da localidade de Meerwala, em junho de 2002, a ser estuprada coletivamente. Seu crime? Nenhum! Seu irmão mais novo, então com 12 anos, estaria se encontrando com uma jovem de uma tribo, considerada de casta superior. Ofendidas, as pessoas da tal casta exigiram, como vingança pelo suposto ataque à honra do grupo, que Mai fosse estuprada.

Ela foi condenada pelo Conselho Tribal e estuprada sucessivamente por quatro homens, enquanto gritava por misericórdia aos 200 homens que testemunhavam a violência. Para concluir a humilhação, foi obrigada a desfilar nua até a sua casa. Seria mais um dos milhões de estupros de que, ainda hoje, mulheres são vítimas, seria mais um dos casos de violência contra a mulher determinada por alegações religiosas ou culturais, não fosse a espantosa coragem de Mai.

Recusando-se a ficar em silêncio, ela desafiou seus algozes e enfrentou o código tribal. Foi à Justiça comum do país pedindo punição de todos os culpados. Em 2004, eles foram condenados e ela recebeu uma indenização. Com o dinheiro, abriu uma escola. Mai, que na sua época nunca teve permissão para estudar, disse que quer trabalhar para melhorar as chances da próxima geração. ¿A escola é o primeiro passo para mudar o mundo. Em geral, o primeiro passo é o que dá mais trabalho, mas é o começo do progresso¿, disse, segundo a BBC News. Ela ainda enfrentou outro constrangimento: no ano passado, teve seus direitos de locomoção reduzidos pelo governo paquistanês, sob a alegação de que era para a sua segurança. A suspeita é de que a intenção era silenciá-la em sua condenação ao país e à omissão do governo.

Mai já venceu mais esta batalha, mas a ONU acabou ajudando o governo do Paquistão. Para isso, teve que esquecer até o preâmbulo da declaração que a criou, que diz o seguinte: ¿Considerando que o desconhecimento e o desprezo dos direitos do Homem conduziram a atos de barbárie que revoltam a consciência da Humanidade e que o advento de um mundo em que os seres humanos sejam livres de falar e de crer, libertos do terror e da miséria, foi proclamado como a mais alta inspiração do Homem...¿

A ONU, guardiã e defensora dessa declaração universal, decidiu que lá Mai tem que se calar. Entre dar voz a uma vítima de grave violação dos direitos humanos ou a mais um burocrata de ocasião, ficou com a segunda opção.

A luta da mulher por respeito é mais dramática em alguns países, mas é mundial. No Brasil, uma pesquisa do Instituto Patrícia Galvão, feita pelo Ibope, mostrou que, entre mulheres que só estudaram até o quarto ano do fundamental, 31% não discordavam da frase: ¿Ele bate, mas ruim com ele, pior sem ele.¿ Até entre quem tem curso superior, foi possível encontrar 8% que aceitavam a frase.

Nesta área, os dados são imprecisos, porque muitas mulheres preferem o silêncio, mas, segundo a Fundação Perseu Abramo, um terço das mulheres com mais de 15 anos já foi vítima de alguma forma de violência física. Em mais de 50% dos casos, a denúncia não é feita. No mundo, em alguns países, a taxa de violência chega até a 69% das mulheres.

Asma Jahangir, da Comissão de Direitos Humanos da ONU no Paquistão, escreveu na revista ¿Time Asia¿ que, nos sete primeiros meses de 2004, nada menos que 151 mulheres paquistanesas foram estupradas da mesma forma e 176 foram condenadas à morte ¿em nome da honra¿. No ano em que Mai foi violentada, foram registrados outros 804 casos de estupros coletivos, 434 deles chegaram a ser noticiados. Os casos de suicídio de mulheres após condenação semelhante por conselho tribal ¿ única justiça em grande parte da área rural do Paquistão ¿ são tão comuns que normalmente são registrados em notícias pequenas nos jornais locais.

O nome e a história de Mai correram mundo e continuarão correndo nos próximos anos. Ela virou um símbolo da luta contra a barbárie, pelos direitos humanos, contra a violência contra a mulher. É admirada, respeitada e apoiada. Tudo o que aconteceu a ela seria mais um caso de abuso contra a mulher num lugar remoto, tolerado pelo mundo com a desculpa de que essa é a cultura local ou essa é a lei religiosa, não fosse sua determinação de não se calar.

Numa entrevista à CNN, Mai disse, numa vozinha baixa e tímida, uma mensagem de extraordinário poder: ¿Eu tenho uma mensagem para as mulheres do mundo, todas as mulheres que foram estupradas ou foram vítimas de violência. É preciso falar sobre o que houve, e lutar por Justiça.¿ Parece simples e fácil, mas para todas as vítimas de violência sexual este é o passo mais difícil: falar sobre o crime e expor a humilhação de que foi vítima.