Título: NA PRAIA, A REFORMA DA SOCIEDADE
Autor: ROBERTO DaMATTA
Fonte: O Globo, 25/01/2006, Opinião, p. 7

A praia é um lugar muito especial. Diferentemente do bar, do restaurante, do estádio e do cinema, que são pagos; da escola e da igreja, fixados pelo dever e pela fé; da praça, que ficou perigosa ou pode ser ocupada por gente indesejável, ela ¿ apesar de ameaçada pela poluição endêmica e pelos arrastões ameaçadores ¿ permaneceu relativamente intocada como um espaço milagrosamente igualitário e prazeroso, definido como inverso a tudo o que é obrigatório ou maçante.

A praia serve para o banho de mar (ou ¿mergulho¿) que exercita e refresca, permite apreciar o diálogo das montanhas com o céu, o mar, o sol e a lua. E deixa encontrar não só a turma que lhe corresponde, pois se divide em pontos, mas também todo tipo de gente estranha que confirma o seu inusitado encanto de juntar o rotineiro com o novo.

Escusado dizer como ela é, acima de tudo, um palco iluminado para esportistas e corpos perfeitos. Em Icaraí, Niterói, nas palmeirinhas, esperávamos aflitos a chegada de algumas deusas que estudadamente se despiam de suas ¿saídas de praia¿ e ¿armavam¿ suas barracas como se estivessem na ilha de Robinson Crusoé, mas tendo plena consciência das dezenas de olhos que as admiravam à distância.

No século passado, a moda dos freqüentadores de praia se resumia num despojamento da parafernália consumista que hoje acompanha o banhista de outrora. Naqueles tempos, levava-se, no máximo, uma barraca e um dinheirinho para um chope, tomado no bar porque a areia não se dividia com a multidão de ambulantes atropeladores de corpos e conversas com seus produtos. Eventualmente, surgia a possibilidade de tomar um sorvete ou um mate. Mas sanduíche, churrasco, queijo, pastel, e outros quitutes que hoje são perversamente obrigatórios, nem sonhar. Aliás, se eles surgissem naquele tempo, seriam considerados o cafona do cafona: coisa de gente da ¿zona norte¿. Pois a praia era o local da vivência a mais despojada e igualitária. Era o local onde o general, o professor, o político, o milionário e o estudante pobre revelavam somente suas idéias, já que seus corpos humildemente se igualavam numa nudez denunciadora da verdadeira democracia à brasileira: a de um corpo com outros, todos sem defesa ou disfarce.

Eu fui à praia com todas as idades e de todas as maneiras. Nu quando era bebê. Com um calção de lã com alcinhas, quando menino, levado obviamente por um pai superatleta que amava o mar, o remo e a natação. Com shorts cáqui, ¿estilo americano¿, com aquele dinheirinho estratégico no bolso e uma boa turma que complementava construindo meu ego quando rapazinho e, finalmente, com mulher e filhos, repetindo o mesmo ciclo mágico de freqüentador destas margens onde, branca e fofa, a terra se acaba afundando numa água salgada muito azul.

Outro dia a ela retornei com filhos e netos, mas, em vez de repetir a vivência marcada pelo prazer, tivemos que dar meia-volta e amargar um retorno lamentado em choro pelos netos e revoltado pelos adultos.

É que a ¿praia¿ estava fria, batida e imunda.

Eu me explico. É que ¿praia¿ se refere a um conjunto. Ele inclui tanto a orla e a areia, quanto a água, o clima e o comportamento do mar. Uma praia boa fala de águas translúcidas, sol, ondas agradáveis, calçadas acolhedoras e areias brancas e sem lixo. Pode significar também ambiente amigável, ¿legal¿ ou ¿bem educado¿, coberta de barracas, com seus ocupantes-habitantes procedendo como vizinhos respeitadores dos espaços das suas sombras e estando, acima de tudo, preocupados com o comportamento maravilhoso e sempre perfeito dos seus filhinhos que gritam e jogam areia em todo mundo, ¿brincando¿ animadamente.

Nesse dia, o povo freqüentador se comportava daquele modo magicamente igualitário, respeitando todos os espaços, o que contrastava brutalmente com o modo com que dirigiam para ali chegar. Se para chegar eram todos monstros do volante, uma vez na praia se tornavam mais igualitários do que os mais idealizados suecos ou suíços, sendo cuidadosos na instalação de suas tralhas e cuidando que seus educadíssimos filhinhos não perturbassem os outros. Lamentavelmente, porém, esse comportamento não ia além das barracas, pois se a sombra que a tenda de cada qual criava estava limpa e forrada, havia lixo em todo o derredor. Como de hábito, o sujeito curtia um refrigerante ou um sanduíche na sua barraca, mas se desfazia das sobras na areia e na orla onde presumia que a água que lava tudo lavaria também o lixo e a sujeira que produzia. Ora, esse lixo, combinado à sujeira do mar desta baía de Guanabara que ¿ PQP! ¿ dizem que está sendo despoluída mas que fica cada dia mais imunda, tornava o banho impossível e insuportável.

¿A gente suja e eles limpam.¿ Voltei para casa refletindo se não era chegado o momento de pensar também na reforma da sociedade. Essa sociedade que na praia e em todos os lugares demanda uma implacável e radical transformação do Estado mas, enquanto isso, joga o lixo que produz na água onde toma banho¿

ROBERTO DaMATTA é antropólogo.

Querem radical transformação do Estado, mas jogam o lixo na água onde tomam banho