Título: MARCHA DA INSENSATEZ
Autor: CARLOS ALBERTO SARDENBERG
Fonte: O Globo, 26/01/2006, Opiniao, p. 7

Há poucos dias o governo da Venezuela interditou a autopista Caracas-La Guairá, que liga a capital aos mais importantes porto e aeroporto do país, porque um dos seus três viadutos ameaçava desabar. Esse viaduto tem 17 quilômetros e os pilares cederam por causa da infiltração de esgotos, um problema detectado há vários anos.

Ora, se o governo Chávez não consegue reparar um viaduto de 17 quilômetros, conseguirá construir um gasoduto de 10 mil quilômetros para fornecer energia venezuelana a consumidores brasileiros e argentinos?

A Venezuela fica lá em cima, faz fronteira com o Brasil pela Amazônia. Entre Venezuela e Argentina, aqui em baixo, ficam Colômbia, Peru, Bolívia e Paraguai. É longe. Portanto, o gasoduto planejado pelos presidentes Lula, Nestor Kirchner e Hugo Chávez precisa mesmo ser um megaprojeto. Cruza o Brasil quase inteiro, cortando toda a floresta amazônica. Não sai por menos de US$20 bilhões, calculam os analistas mais otimistas.

Mas, argumenta-se, a Venezuela, nona produtora mundial de petróleo, só vai entrar com o dinheiro. A competência técnico-administrativa fica por conta de Brasil e Argentina.

O governo Lula, entrando no seu quarto ano, está lançando um controvertido plano de emergência para consertar estradas federais. A reparar: uma emergência depois de três anos em que todo mundo estava cansado de conhecer a lastimável situação das rodovias. Também em três anos, o governo não conseguiu definir um modelo de concessão de estradas, muito menos colocou de pé as Parcerias Público-Privadas.

O governo argentino não consegue nem desenvolver a produção de seu próprio gás. Faltam investidores privados, porque o governo não resolveu a questão das tarifas.

Dizem agora os três presidentes que, em seis meses, apresentarão o projeto técnico do supergasoduto, incluindo o arranjo financeiro e os estudos de impacto ambiental. Em seis meses, antes da Copa.

Imaginando que o façam, por que buscar a energia da Venezuela lá em cima, se a Petrobras está iniciando investimentos enormes para explorar o gás da bacia de Santos, aqui pertinho? Por que trazer lá do norte um produto que sairá muito mais caro, se a Argentina tem suas reservas e, como o Brasil, também recebe gás da Bolívia, aqui ao lado?

O dinheiro também é duvidoso. É verdade que a Venezuela está nadando em petrodólares. Mas também é verdade que o presidente Hugo Chávez se compromete com megaprojetos por toda a América Latina, a tal ponto que seus aliados reclamam que precisa gastar mais em seu próprio país. Há sinais de deterioração em toda a infra-estrutura da Venezuela, como sinaliza a interdição de uma autopista pela qual passavam 50 mil carros e caminhões por dia.

Analistas relatam que têm ocorrido diversos problemas e acidentes nas instalações petrolíferas venezuelanas, provavelmente causados por falta de investimentos em manutenção.

Já os governos de Brasil e Argentina não estão nadando em dinheiro. Ao contrário, reclamam que falta. O governo Kirchner, por exemplo, já precisou pendurar no Banco Central da Venezuela títulos no valor de mais de US$2 bilhões, para compor suas dívidas. Esse dinheiro, aliás, sai fácil pelos azeitados canais do mercado financeiro privado. Não basta apertar teclas de computador para construir um gasoduto.

Por falar em mercado privado, certamente ali se encontrariam os US$20 bilhões. Há sobra de liquidez no mundo, procuram-se bons projetos. E aí reside o problema: os particulares só investem se tiverem garantia de rentabilidade, o que significa confiar em contratos de longo prazo acerca de tarifas e pagamentos. Com Kirchner e Chávez hoje e sabe-se lá quem daqui a cinco anos?

Que Chávez tem acessos de megalomania é sabido. Mas Lula e Kirchner não poderiam ignorar a insensatez. Talvez não queiram desagradar Chávez, Kirchner porque precisa dos dólares venezuelanos, Lula porque não quer passar a impressão de que se opõe à grande união do Sul. Mas poderiam ter arrumado uma história, digamos, menos ridícula. Será que ninguém se animou a dizer ao chefe que essa coisa não se sustenta?

CARLOS ALBERTO SARDENBERG é jornalista.