Título: PT e PSDB, amor e ódio
Autor: Merval Pereira
Fonte: O Globo, 19/11/2004, O País, p. 4

A relação de amor e ódio entre o PT e o PSDB, mais especialmente entre os principais líderes paulistas do núcleo fundador dos dois partidos, que têm a mesma origem política e se cruzam desde os anos 70, permeou todo o dia de ontem do Fórum Brasil, realizado aqui em Lisboa pela Fundação Luso-Brasileira.

O ex-embaixador e ex-ministro José Gregori abriu a caixa de recordações ao lembrar, como moderador da mesa em que se debateram as perspectivas políticas e econômicas brasileiras, que fora ele quem apresentou Lula a Fernando Henrique, no início da década de 70, quando prestava ajuda aos sindicalistas como advogado na Comissão de Justiça e Paz de São Paulo. Eu mesmo, na minha palestra, lembrei que embora os fatos políticos os tenham afastado constantemente, PT e PSDB vieram da mesma fôrma e podiam estar juntos desde o início de suas fundações. Já contei essa história aqui na coluna, mas vale a pena repetir. Quando pensou em fundar um partido político, Fernando Henrique Cardoso procurou Frei Betto, o assessor especial e amigo da vida inteira de Lula, que acaba de anunciar, como noticiou o Ancelmo Gois, sua saída do governo no fim do ano. Mais um batido pelas disputas de poder, comuns a qualquer governo, mais comuns ainda num governo petista.

Fernando Henrique pensava utilizar a experiência com as Comissões Eclesiais de Base (CEBs) para fundar um partido socialista, mas Frei Betto considerou o projeto elitista, e se engajou mais tarde na criação do Partido dos Trabalhadores. Desse encontro participaram também intelectuais como Bresser Pereira, que foi ministro de Fernando Henrique e hoje se opõe à política econômica do PT e, por conseguinte, do PSDB, e Plinio de Arruda Sampaio, que acabou sendo um dos fundadores do PT, que nasceu em 1980, do encontro da Convergência Socialista com as CEBs e os sindicatos.

O PSDB nasceu assim sem as bases operárias que caracterizam os partidos social-democratas europeus. E o PT só recentemente aceitou sua veia social-democrata, já tendo, inclusive, contatos com a Internacional Socialista para uma provável adesão. O PT nasceu anticapitalista e sonhando com o socialismo, e dez anos depois, com a derrota na eleição presidencial para Fernando Collor, começou a discutir se faria coalizões partidárias, ou se continuaria como apêndice dos sindicatos. Hoje, tenta se equilibrar entre os dois caminhos, e cai em tentações como controlar a máquina administrativa com militantes partidários e sindicalistas, que agora estão prestes a tomar conta do Banco do Brasil.

Essas divergências, que até hoje dividem o partido, ficaram evidentes com a chegada ao poder nacional. Mas já existiam quando o PT começou a ganhar as administrações de grandes cidades e capitais: Campinas, a prefeitura de São Paulo com Luiza Erundina, Fortaleza com a prefeita Maria Fontenelle, e até mesmo o governo de estados, como Espírito Santo com Augusto Buaiz. Todos acabaram, por uma razão ou por outra, abandonando o PT, sem possibilidade de governar.

As tensões entre as bases partidárias e a administração eleita, que enfrentava a realidade de governar, sempre existiram. A tese de que é necessário haver distanciamento, e mesmo tensão entre o partido e o governo, ainda vigora em alguns setores. E por isso era considerado saudável, por exemplo, a dissidência explícita do ex-presidente do BNDES, Carlos Lessa, em relação à política econômica.

Essa ambigüidade do PT sempre foi criticada pelo grupo fundador do PSDB. Os dois grupos estiveram juntos desde o início das lutas pela redemocratização, caminhos se cruzando em diversos instantes da política brasileira. E ontem, aqui em Lisboa, um Fernando Henrique nostálgico dos velhos tempos de luta se referiu à campanha em que Lula o apoiou ao Senado. Fernando Henrique e Lula se conheceram por volta de 1973 no Centro Brasileiro de Política (Cebrap), que Fernando Henrique havia fundado na volta do seu exílio político.

Depois desse primeiro encontro, só anos mais tarde Lula mandou-lhe um recado, através do também sociólogo Chico Oliveira, hoje dissidente do PT depois de ter ajudado a fundá-lo, e também brigado com FH. No sindicato de São Bernardo, Lula comunicou ao professor Fernando Henrique que os sindicalistas haviam resolvido apoiar sua candidatura ao Senado nas eleições de 1978 ¿porque você nunca se meteu a dar lições à classe operária¿. Talvez Lula não repetisse a frase hoje em dia, mas ela está registrada na história política brasileira em um depoimento de FH em um programa de televisão.

Fizeram juntos depois, em 1979, o Encontro de São Bernardo, organizado pelos dois e mais Almino Afonso, que acabou aderindo ao PDT de Brizola. Compareceram à reunião membros do PTB, do PMDB, do PCB e de outras organizações clandestinas. Lula era contra a participação da oposição sindical, ligada à Igreja e ao Partidão. Segundo FH, Lula, àquela altura, era um líder sindical reivindicativo, mas com pouca visão política. Fernando Henrique diz que por isso o PT nasceu um partido muito fechado e corporativo, que não levou em conta a dinâmica do mundo moderno, não analisou a derrocada do socialismo. Essa história, mais detalhada, está contada no livro ¿O sapo e o príncipe¿, de Paulo Markun, que, acho, vai fazer muito sucesso aqui em Portugal.

Hoje, a diferença entre o PT e o PSDB existe menos na prática do que no discurso, especialmente na economia. Mas os tucanos ainda vêem um ranço socialista em atitudes do PT, consideram seu programa ¿muito estreito¿, e criticam a interferência do Estado em alguns pontos decisivos da economia, como nas agências reguladoras, cuja autonomia claramente incomoda setores do governo petista. Ontem mesmo, na palestra que deu no Fórum Brasil, FH voltou a falar da dificuldade que é entender o papel das agências reguladoras num país que, como parte da herança portuguesa, tem o hábito controlador do Estado.

Já os petistas desprezam a social-democracia tucana, que chamam de neoliberalismo. Agem até hoje com o PSDB como agiram, 30 anos atrás, os intelectuais paulistas em relação a um exilado político português, Mario Soares, que ontem, ao saudar FH, relembrou o primeiro encontro dos dois. Soares já defendia a social-democracia, e foi tratado por Fernando Henrique, José Serra e outros intelectuais como, segundo suas palavras, ¿um revisionista desprezível¿. Hoje, estão o PS português, o PSDB e o PT brasileiros, todos na mesma Internacional Socialista.