Título: Sob a sombra do Iraque
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Fonte: O Globo, 19/11/2004, O mundo, p. 38

Nos cem anos do tratado que marcou o fim da rivalidade colonial entre França e Reino Unido, o presidente Jacques Chirac e o primeiro-ministro Tony Blair tentaram demonstrar união, mas não conseguiram esconder as diferenças que continuam a existir com relação ao Iraque. Apesar das declarações cordiais e de os dois governantes parecerem mais à vontade do que em encontros anteriores, o que transpareceu nas entrelinhas é que as relações entre Paris e Londres, tradicionalmente delicadas, continuam as mesmas.

No encontro, em Londres, os dois governantes ressaltaram pontos em comum, destacando o interesse em ajudar a retomada o processo de paz no Oriente Médio. Mas Chirac repetiu sua opinião de que o mundo não está mais seguro após a guerra do Iraque.

¿ Será a História que dirá quem tem razão ¿ disse, ao lado de Blair. ¿ Se se observa a evolução do mundo em relação à segurança e ao desenvolvimento do terrorismo, não só no Oriente Médio, mas no planeta inteiro, (...) não se pode dizer que a situação tenha melhorado.

Blair e Chirac ressaltaram que a invasão do Iraque era o único ponto em que seus países discordavam e afirmaram que estão unidos no esforço para um novo Iraque.

¿ Creio que nossas diferenças no momento do conflito são bem conhecidas. Mas ambos queremos ver um Iraque estável e democrático e faremos o possível para garantir que isto aconteça ¿ afirmou Blair.

O risco de um novo imperialismo

A visita de Chirac a Londres é vista como uma tentativa de apaziguar as desavenças que marcaram a invasão do Iraque, em março de 2003 ¿ quando França, Alemanha e Rússia se opuseram ao conflito, enquanto o Reino Unido integrou a coalizão liderada pelos Estados Unidos.

Nos demais assuntos ¿ como a questão nuclear iraniana, mudanças climáticas, desenvolvimento da África, defesa e diplomacia européias ¿ os dois governantes disseram concordar. O primeiro-ministro britânico destacou que os dois países estão dispostos a fazer o possível para reativar e fortalecer o processo de paz entre israelenses e palestinos.

¿ Discutimos o processo e cremos que é importante que haja eleições no lado palestino ¿ disse.

Mais tarde, no Instituto Internacional de Estudos Estratégicos (IISS), em Londres, o presidente francês afirmou que a iniciativa deveria reunir americanos e europeus, numa ¿associação equilibrada¿.

¿ A solução do conflito no Oriente Médio não pode esperar ¿ afirmou.

Mas o tom mais cordial adotado em Downing Street deu lugar a um discurso mais afiado. No que parece ter sido uma mensagem de cautela a Blair, Chirac advertiu sobre o risco de confundir a democratização do mundo ¿ como defende Washington ¿ com uma ocidentalização, que poderia ser vista como novo imperialismo. O presidente francês defendeu o diálogo entre a Europa e os ¿principais pólos mundiais¿, citando China, Índia e Brasil.

¿ A população submetida à dominação do Ocidente no passado não a esqueceu e está disposta a ver um ressurgimento do imperialismo e do colonialismo em nossos atos.

Chirac está no Reino Unido para os cem anos do Entente Cordiale ¿ acordo de 1904 que pôs fim a séculos de hostilidade entre os rivais, com seus impérios coloniais ao redor do mundo. Ele jantou ontem com a rainha Elizabeth II no Castelo de Windsor, onde assistiria ao musical ¿Les miserables¿, inspirado na obra de Victor Hugo. Num ato classificado de mau gosto pelo jornal ¿Le Figaro¿, a peça seria apresentada na Sala Waterloo, onde há um grande quadro do primeiro duque de Wellington, rodeado por chefes militares que ajudaram a derrotar Napoleão Bonaparte, em 1815. A sala foi rebatizada de Salão de Música para a ocasião.