Título: Mistério vermelho
Autor: Xico Graziano
Fonte: O Globo, 23/11/2004, Opinião, p. 7
Passadas as eleições, conforme se temia, retorna forte a confusão no campo. Por que não sossega esse assunto? A resposta parece simples: ora, o movimento social pressiona o governo para fazer andar a reforma agrária. Fácil.
Cuidado. O óbvio nem sempre é banal. A explicação valia no governo Fernando Henrique, quando o PT insuflava as estripulias do MST. Havia má vontade contra o latifúndio, diziam. Mas, agora, a oposição é poder. Por que não resolve isso logo?
Um pouco de história ajuda a destrinchar esse mistério. Quando ressurgiu a questão agrária no Brasil, trazida pelo processo de redemocratização, em meados de 80, o país mostrava muita injustiça no campo. Sonhos estavam contidos.
Sarney tomou posse e, embalado pelos ventos da liberdade, anunciou as metas do seu plano nacional de reforma agrária: 1,4 milhão de famílias a ser assentada. Chegara a hora de resgatar a dívida social no campo. Os ideólogos da esquerda aplaudiram. Os economistas rurais julgaram uma temeridade.
A frustração de expectativas com a reforma agrária da Nova República, que afinal não saía do papel, acirrou os ânimos da Assembléia Nacional Constituinte.
A esquerda nervosa queria limitar o tamanho da propriedade rural. Acima daquele x, a área seria expropriada e dividida entre os trabalhadores. Quer dizer, no campo, o capitalismo não poderia crescer. A proposta pseudo-revolucionária polarizou o debate e levou ao enfrentamento.
O resultado foi previsível, com a vitória dos conservadores. Desde Lenin, quando apontou o esquerdismo como doença infantil do comunismo, sabe-se que o poder não se cutuca com vara curta.
A nova Constituição foi promulgada em 1988. No ano seguinte, Collor vence as eleições. Fez o que fez. Veio o impeachment. Assumiu Itamar Franco. Durante anos o problema agrário permaneceu latente, mal resolvido. Crescia o fermento da encrenca.
Fernando Henrique vence as eleições e nomeia um banqueiro para o Ministério da Agricultura. Este, por sua vez, coloca no Incra um produtor rural. Sim, nessa época a reforma agrária se vinculava à pasta da Agricultura. Nada acontecia.
Represadas as expectativas e inoperante o governo, começa o MST a preparar sua fase agressiva, baseada nas invasões de terra. Afinal, desde a reforma agrária anunciada, e nunca cumprida, do governo Sarney, os conflitos já se arrastavam há década. Sem nenhuma decisão.
Naquela época, 17 mil famílias acampadas pelo país afora, principalmente nas beiras das estradas, exigiam terras para cultivar. Esse era o volume do conflito agrário. Massacres ocorreram e, pressionado pela opinião pública, o governo se mexeu. Resultado: nos 8 anos de governo tucano, cerca de 500 mil famílias foram atendidas pela reforma agrária.
Surgiu um paradoxo: quanto mais se assentava, mais o MST invadia. Resolvia-se um conflito, outro estava montado. Progressivamente, claro estava que a solução do problema, por incrível que pareça, não residia em fazer mais reforma agrária.
Quando Lula venceu as eleições se imaginou que o MST não teria mais razões para invadir nada. Estranhamente, o filme passa repetido. Virou tudo uma mesmice, as invasões, o discurso do MST, as justificativas do governo, as manchetes dos jornais.
Um fato é, curiosamente, incontestável: o governo atual empacou a reforma agrária. Em 2 anos, excluindo os lotes vazios preenchidos, abriu apenas 25 mil novos postos de assentamento. Quase nada.
De duas, uma: ou o presidente Lula não realiza a reforma agrária porque não quer, merecendo então apanhar do MST, ou então sabe que, devido à modernização do campo, o ciclo da reforma agrária se esgotou, mas não tem coragem de contar para os ex-apadrinhados. Seu ministro faz o contrário: anuncia metas milagrosas e alimenta o balcão das ilusões perdidas.
Concluindo: por detrás do chamado novembro vermelho se esconde um logro. No passado, podia fazer sentido pressionar o governo para equacionar os históricos conflitos agrários. Hoje, significa uma ameaça autoritária, quando não uma forma dissimulada de ampliar o acesso às verbas públicas. Pura manipulação política.
Assiste-se, assim, na mais recente onda de invasões e de violência rural, aos estertores da reforma agrária. Um canto de cisne. Xico Graziano foi presidente do Incra e secretário da Agricultura do Estado de São Paulo. E-mail: xicograziano@terra.com.br.