Título: Lula e a esquerda da América Latina
Autor: Pereira, Merval
Fonte: O Globo, 24/11/2004, O país, p. 4
No momento em que a esquerda do PT se bate contra a política econômica, e advoga rupturas insensatas com o mercado financeiro internacional, um artigo de Joaquin Villalobos, ex-chefe guerrilheiro da Frente Farabundo Marti de Libertação Nacional (FMLN) de El Salvador, publicado recentemente no jornal ¿El País¿ e na revista ¿Encuentro¿, dedicada a Cuba e publicada em Madri, faz uma análise sobre uma nova visão da esquerda latino-americana e o papel que o governo de Lula pode ter para seu avanço no continente.
Villalobos hoje vive na Inglaterra e é um dissidente da FMLN, partido de esquerda radical que perdeu a eleição presidencial este ano.
Intitulado ¿Fidel, Lula, Allende e o futuro da esquerda¿, o artigo de Villalobos começa sem meias-palavras, de maneira cortante: ¿Setores da esquerda pensam que a batalha principal é contra o neoliberalismo, e não contra suas velhas idéias¿. Para ele, ¿Cuba é hoje a representação de um populismo de esquerda vendido como revolução, e a Venezuela sua expressão atualizada¿.
A idéia de resolver o problema da fome sem fazer contas torna a esquerda inelegível, ou a põe a governar organizando marchas de protesto a partir do Executivo, tal como fazem Castro e Chávez, diz Villalobos. Para ele, a polaridade na América Latina é Lula versus Fidel ¿porque Lula representa a esquerda fazendo real política¿.
Analisando a história recente latino-americana, Joaquin Villalobos diz que ¿a derrota das idéias autoritárias na direita tornou a democracia possível. A derrota das idéias populistas na esquerda é o que pode torná-la viável para resolver a questão da pobreza¿.
Assim como a direita ganhou eleições quando deixou de ser autoritária, e passou a governar toda a América Latina, quando as esquerdas superarem o populismo, ocorrerá o mesmo, afirma Villalobos. Para ele, a capacidade de a direita ser agente de mudanças e modernização econômica está se esgotando, e o continente inteiro necessita realizar ajustes sociais. ¿Mas com as contas corretas e sem mercados aterrorizados¿, alerta.
Ele chega a dizer que Fidel, assim como fez a União Soviética no passado, coloca o antiimperialismo no centro do programa das esquerdas no mundo, passando a ser um obstáculo: ¿Assim que terminar o governo de Castro, se acabará o debate e se abrirá o caminho para que as esquerdas governem¿, escreve Villalobos, abordando indiretamente o futuro de Cuba sem Fidel.
Villalobos lembra de uma frase de Lula ¿ ¿Colocar a culpa de nossa pobreza no imperialismo é bobagem¿ ¿ para dizer que ¿agir assim não ajuda os pobres de cada país, e os leva a defender posições nacionalistas que são essencialmente reacionárias e de direita¿. Relaciona uma série de fatores econômicos, normalmente classificados de neoliberais, que, segundo ele, são na verdade de esquerda: a integração econômica, o fim das fronteiras, as moedas comuns e a utilização do capital estrangeiro com fins civilizatórios em países atrasados.¿Como, quando, onde, é assunto de negociação, mas estar contra é reacionário.¿
Segundo o ex-guerrilheiro salvadorenho, ¿o único caminho para que os grandes capitais nacionais em nossos países percam posições monopolistas, respeitem os consumidores, tratem com justiça os trabalhadores e considerem o meio ambiente, é forçá-los a competir com o mundo desenvolvido¿.
Quando as esquerdas se preocupam mais com os efeitos da globalização na agricultura do que com a industrialização do Terceiro Mundo, estão fazendo o trabalho da direita, diz Villalobos, para quem tornou-se usual definir que a principal batalha política na América Latina é entre o presidente da Colômbia, Alvaro Uribe, representando a direita, e Lula pela esquerda.
Mas ele acha que, para além da ideologia, ¿são dois presidentes fazendo a política real. Uribe tem uma agenda de segurança que deve cumprir respeitando a democracia, e Lula tem uma agenda social que deve realizar sem fragilizar a estabilidade macroeconômica¿.
O ex-guerrilheiro faz o seguinte paralelo dos dois presidentes: ambos combinam em seus programas estratégias e gabinetes, idéias e pessoas de esquerda e direita, ambos são muito populares e são pressionados pelos seus extremos.
Villalobos chega a fazer uma revelação no seu artigo, lembrando uma conversa com Lula em 1993. Já naquele tempo, Lula reconhecia que ¿Cuba é um tema complicado para a esquerda democrática¿. Lula teria dito que é fácil explicar as idéias sobre mercado e democracia, mas ¿nossas respostas à pergunta se Cuba é uma ditadura ou uma democracia são sempre ambíguas¿.
Villalobos diz que esse é um problema basicamente emocional da esquerda latino-americana, já que Cuba apoiou todos os que enfrentaram ditaduras. Por isso, muito poucos dizem o que pensam, como fez José Saramago quando exclamou: ¿Até aqui vou com a Revolução Cubana¿, ao romper com o regime de Fidel depois do fuzilamento de dissidentes.
Depois de fazer uma análise das relações internacionais de Cuba com os Estados Unidos e outros países, especialmente o Chile de Allende, e admitindo que ¿a solidariedade é um valor real, mas em política não existem as idéias desinteressadas, muito menos em política exterior de governos¿, Villalobos conta que logo após a posse de Allende, Fidel permaneceu no Chile ¿radicalizando a esquerda e provocando a direita¿. Villalobos diz que Fidel quer que as esquerdas estejam em conflito permanente com os Estados Unidos ¿porque isso permite a ele continuar no poder¿.
Permeia todo o artigo de Villalobos a idéia de que Fidel Castro ( e mesmo Chávez) exacerbam o confronto com os Estados Unidos porque interessa a eles a radicalização. E quando o governo Lula confronta os Estados Unidos, está em busca de um resultado concreto nas negociações comerciais ou políticas.
Mas afirma, frio e cortante até o final: ¿O regime cubano entrou em uma crise terminal. As relações com Cuba são agora um tema da direita, que quer investir na ilha no capitalismo pós-Castro. Para a esquerda, Cuba deve ser agora um tema secundário, porque não há razão para que morra com Fidel tendo tanto futuro¿.