Título: Companheiros de Guevara
Autor: DENIS LERRER ROSENFIELD
Fonte: O Globo, 29/11/2004, Opinião, p. 7

Apesar das aparências, o título deste artigo deveria ser posto entre aspas, pois foi extraído de um caderno de ¿Cantos¿ do MST, comemorativo de suas lutas e conquistas. Como não poderia deixar de ser, a sua segunda estrofe retoma os velhos refrões da luta revolucionária: ¿E quem ficou sem chegar/Sem poder andar estará presente/Grande será nosso espanto/De ver o encanto do bom comandante/Chegando na hora certa/Com sua voz desperta nossa rebeldia/Companheiros de Guevara/Trilhando a estrada por um novo dia¿.

Estrada difícil, cujo percurso no passado mostrou horrores que se perfilavam no próprio caminho, numa viagem ao inferno, como nos campos de trabalho de Stalin, exemplos do que a Humanidade não deveria jamais repetir. A estrada de Guevara foi a tomada por seus companheiros que tornaram Cuba uma grande prisão, com execução sumária de seus dissidentes. A estrada alardeada é a que está formando a cabeça dos jovens que, hoje, habitam assentamentos e acampamentos do MST, com dinheiro público, em nome de uma educação ¿revolucionária¿. Nesse folheto, chamam atenção fotos de Guevara em todas as páginas, do guerrilheiro a cavalo ao combatente morto na Bolívia, passando pelo líder revolucionário vitorioso em Cuba e pelo tribuno da revolução nos países latino-americanos. História de um mártir a ser rememorado por jovens que, nele vendo um exemplo, estarão dispostos a pegar em armas, como ele o fez, para a destruição das sociedades democráticas.

Símbolos falam por si mesmos e Guevara é um desses que continua não só ornando um certo imaginário latino-americano, como orientando a educação de crianças segundo as cartilhas do MST e balizando a ação dos ¿companheiros¿ adultos. Não deixa de ser engraçado ouvir as declarações de dirigentes petistas quando caracterizam esse movimento como ¿social¿, como se ele não fosse essencialmente ¿revolucionário¿, voltado para a destruição da economia de mercado, da democracia e das liberdades. O próprio ministro da Educação chegou a dizer que estabeleceria uma interlocução com o MST para a discussão da reforma universitária. O que será que ele quis dizer com isto? Que se poria à escuta das diretrizes revolucionárias desse movimento? Que um movimento revolucionário tem algo a dizer sobre a educação superior?

Em matéria de educação, o MST é muito bem organizado. Aliás, com revolução não se brinca, pois ela é o resultado de um longo processo, que passa pela formação de todos os indivíduos possíveis e, em particular, pelos que serão os seus quadros dirigentes. Em bons discípulos de Lênin, eles não esqueceram a ¿qualificação¿ das vanguardas revolucionárias, que irão substituir o povo na liderança desse processo. Como já dizia o jovem Trotsky antecipando a sua crítica futura de Stalin: o povo é substituído pelo partido, o partido pelo comitê central, o comitê central pelo birô político e este pelo secretário geral.

Em um outro documento, relativo às qualidades dos dirigentes revolucionários, essa formulação é assim traduzida: ¿O comando coletivo implica a aceitação consciente dos subalternos para com o responsável ou responsáveis em dirigi-los; implica a participação de todos os membros de um organismo nas decisões fundamentais que devem ser tomadas por um dirigente (centralismo democrático)... Implica a submissão do indivíduo ao coletivo... Implica a subordinação de todos os quadros e todos os organismos de uma direção.¿ E mais adiante, no clímax revolucionário: ¿Para resolver as contradições com nossos inimigos devemos aplicar a ditadura.¿ Eloqüente, não?

Numa curiosa ironia, os ¿Cadernos do educando¿, voltados para a formação ¿política¿ dos jovens, têm como título ¿Pra soletrar a liberdade¿, quando essa é estropiada, nas diferentes publicações e ações do MST. Para que símbolos não fiquem ao léu, pois são fundamentais para a identidade coletiva, eles devem ser reiterados em distintos instrumentos de ¿educação¿, numa modelagem das crianças e adolescentes. A organização revolucionária, planejada a longo prazo, assim o exige. Ou, como estipula um texto ¿educacional¿, intitulado ¿Somos Sem Terra¿: ¿A organização é a chave que permite agarrar as iniciativas do povo e transformá-las em ação. Assinado: Che Guevara¿. DENIS LERRER ROSENFIELD é professor de filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.