Título: FALSO DILEMA
Autor: Jorge Maranhão
Fonte: O Globo, 25/11/2004, Primeiro Caderno, p. 7

Assisto a caloroso debate sobre as relações da imprensa com a sociedade civil. Esta representada por cerca de 70 líderes das mais variadas ONGs parceiras da Fundação Avina. Um fórum qualificado, uma vez que se trata de uma instituição mundial que congrega centenas de empreendedores sociais do mundo ibero-americano, já tendo investido mais de US$122 milhões em 73 projetos de responsabilidade social no Brasil, nas áreas de meio ambiente, geração de renda e desenvolvimento local, ações afirmativas no campo das crianças, dos idosos, grupos étnicos e de gênero, além de controle social de governos e políticas públicas.

A imprensa, representada por dirigentes da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), aproveitou o encontro para mais uma vez fazer coro contra a natimorta proposta de criação do Conselho Nacional de Jornalismo. Os líderes da Avina, embora não reconheçam como assunto prioritário a discussão sobre a tutela governamental da atividade jornalística, sempre reivindicam mais atenção e espaço das redações para as questões da sociedade civil. O que é sempre questionado pela imprensa sob o argumento de que agenda positiva não é notícia, notícia boa é notícia chata, notícia é o homem mordendo o cachorro e não o cachorro mordendo o homem etc.

Saio da reunião preocupado se avançamos na direção certa da urgente aliança da imprensa com a sociedade civil. E desconfio que a própria natureza dos governos de concentrar mais e mais poder se nutre exatamente das nossas divisões.

Desde Casa-grande & senzala temos o vezo de identificar a cultura brasileira por uma série de antagonismos sociais, tais como sinhozinhos & patifes, brasilienses & brasileiros, cidadãos da Bélgica & párias da Índia, marajás & descamisados, espertos & otários etc. Como sempre vi nesses antagonismos uma mera redução de viés economicista ou sociológico, e o que funda minha visão de nossa miséria cultural é a questão política e da justiça, resolvi acrescentar a esta lista a antonímia dos impunes & penitentes, dos que fazem a justiça com as próprias mãos em oposição aos que a esperam provida das mãos de Deus. Mas sempre me pareceu uma visão tão míope e simplória quanto a referência aos ricos & pobres ou mocinhos & bandidos das fábulas tradicionais.

Penso que é cada dia mais urgente que a vanguarda da inteligência jornalística brasileira sente-se com a vanguarda dos empreendedores sociais para superar esses falsos dilemas. Que do lado da imprensa, ela reveja a sua ingênua crença de que só há notícia na "denúncia" dos crimes contra o patrimônio público. Que do lado das ONGs, elas revejam seu voluntarismo de que basta fazer para mudar.

Se a imprensa, com todo o seu poder, não pode ser a única arma de controle social sobre os governos, as ONGs também se iludem quando desprezam o poder do marketing social, da imprescindível exemplaridade da conduta social, que só pode ser multiplicada no espaço público pelo recurso da publicidade. Fora deste urgente entendimento, tudo será mais lento e difícil para atingirmos o grau de cultura política e de cidadania que a nação está a exigir de suas elites; que a violação legal e a violência social está a exigir de nossa responsabilidade política. Pois é tão arrogante quanto ingênuo a imprensa achar que é a palmatória do poder, quanto as ONGs acreditarem que mudarão sozinhas o país.

A superação de nossa crise social não é econômica ou fiscal, mas sim a superação de nossa miséria cultural, a superação do impasse entre a crise de valores do setor privado e a crise de gestão do setor público. Pois mesmo a cobrança de responsabilidade fiscal de governos em contraponto à responsabilidade social de empresas é mais um falso antagonismo da irresponsabilidade política de nossas elites.