Título: A escolha inteligente
Autor: Luís Loures
Fonte: O Globo, 01/12/2004, Opinião, p. 7
Há vinte anos, quando a palavra Aids apareceu pela primeira vez nos títulos dos grandes jornais, a maioria das pessoas infectadas com o HIV eram homens. Hoje, praticamente metade das pessoas que vivem com o HIV e a Aids no mundo são mulheres. Em quase todas as regiões do globo, o número de mulheres infectadas está crescendo, particularmente no Leste da Europa, na Ásia e na América Latina. Se a tendência atual se mantiver, o número de mulheres e adolescentes infectadas com o HIV ultrapassará rapidamente o número de homens e rapazes.
No Brasil, no fim dos anos 90, o aumento do número de novos casos de Aids em mulheres foi de 75%, enquanto que em homens foi de 10%. O Boletim Epidemiológico do Programa Nacional de DST/Aids, divulgado nesta terça-feira 30, indica que o número de casos de Aids entre mulheres no Brasil é o maior desde o início da epidemia. Enquanto em 1998 havia 10.566 registros, em 2003 esse número chegou a 12.599. Atualmente, as mulheres representam 36% do 1 milhão e setecentos mil adultos que vivem com o HIV na América Latina.
Uma explicação para esse aumento da feminização da Aids é que a epidemia não está limitada a populações específicas. A maioria dos usuários de drogas injetáveis são jovens e muitos deles são sexualmente ativos.
Uma grande parte dos clientes masculinos das profissionais do sexo tem outras parceiras sexuais, incluindo as suas próprias esposas e namoradas regulares. Alguns homens que têm sexo com outros homens também têm sexo com mulheres. Isso explica que nenhum dos aspectos da pandemia da Aids é delimitado. À medida que essa epidemia cresce cada vez mais e se implanta com mais firmeza, muito mais mulheres, assim como homens, infectam-se com o HIV.
Para conseguirmos deter a propagação dessa doença, temos de fazer mudanças fundamentais na maneira de proteger as adolescentes e as mulheres da Aids. Temos de reconhecer a trágica realidade de que muito poucas mulheres têm condições de escolher quando e com quem têm relações sexuais.
Para muitas mulheres, a única alternativa de assegurarem a sua sobrevivência e a de seus filhos é estarem à disposição de um ou de vários homens. No mundo, uma das causas mais comuns de infecção nas adolescentes são as relações ¿transacionais¿ com homens mais idosos, nas quais elas têm sexo em troca de roupas ou outros presentes.
Também temos de tomar consciência de que as mulheres estão mais freqüentemente expostas à violência, incluindo o abuso sexual e o estupro. Em quase todos os países do mundo, a violência doméstica é a principal causa das agressões físicas contra mulheres. Essa violência não é só uma violação básica dos direitos humanos fundamentais, mas também está relacionada a uma grande série de problemas gerais de saúde mental, saúde reprodutiva e Aids.
As mulheres que têm maridos violentos têm menos possibilidades de negociar o uso do preservativo com medo das reações agressivas deles e, além disso, é evidente que a imposição pela força aumenta o risco de transmissão do HIV.
O grande lado positivo é que as mulheres estão se associando cada vez mais para apoiar, dar nova energia e direcionar a luta contra a Aids, melhorando a vida de muitas adolescentes e mulheres no mundo.
Para que isso se torne realidade, os homens e os rapazes têm de se envolver completamente. Os pais que encorajam suas filhas a freqüentarem a escola estão proporcionando a elas uma oportunidade de vida melhor, sem Aids. As mães que se asseguram de que os membros femininos das suas famílias têm acesso a tratamentos contra a Aids e a programas de prevenção têm muito mais possibilidades de poder vê-las crescerem. Os homens, em qualquer idade, que tomam uma posição firme contra a violência, podem fazer do mundo um lugar mais seguro para adolescentes e mulheres.
Temos de agir mais em termos globais, enfocando atenção e recursos para a face feminina da Aids, assim como dar às adolescentes e às mulheres melhores oportunidades em relação à prevenção contra a Aids. É urgente a necessidade de disponibilizar melhor acesso ao preservativo feminino e é ainda mais urgente a necessidade de investir num microbicida seguro e eficaz que as mulheres possam usar para se prevenir da Aids.
Apesar dos esforços que muitos de nós fazemos para aliviar o impacto da Aids, ainda não conseguimos mudar-lhe o rumo. Para alcançarmos isso, temos todos de fazer grandes esforços para promover soluções a longo prazo. Isso pode significar o desafio de costumes e tradições ancestrais, mas, se queremos deter a propagação da Aids, essa é a escolha inteligente. LUÍS LOURES é diretor do Programa das Nações Unidas sobre Aids (Unaids) para Europa e Américas.