Título: Tribunal racial
Autor: JOSÉ LUÍS PETRUCCELLI e MOEMA TEIXEIRA
Fonte: O Globo, 06/12/2004, Opinião, p. 7

Cotas raciais para ingresso no ensino superior constituem um tema candente no Brasil contemporâneo. Pelos procedimentos adotados, o sistema da Universidade de Brasília (UnB) é particularmente polêmico. Um novo vestibular está em andamento na UnB, o que é uma oportunidade para refletir sobre os rumos das políticas de cotas no país.

Praticamente todas as universidades que adotaram as cotas se baseiam unicamente na autodeclaração. A UnB é exceção. Há uma comissão que averigua se os vestibulandos que se autodeclararam negros (ou seja, pardos e pretos) são, de fato, da raça negra. A avaliação é pela análise de fotos, olhando-se cor da pele, tipo de cabelo, formato do nariz, etc. A comissão inclui docentes e pessoas do movimento negro.

Aqueles cuja autodeclaração não for homologada pela comissão podem entrar com recurso. São, então, entrevistados. No último vestibular, o rol de perguntas incluiu se o candidato já havia tido alguma ligação com o movimento negro, se já fora discriminado por sua cor e se já tinha se pensado como negro antes de se inscrever no vestibular. Um candidato declarou à imprensa que chegou a ser indagado se já havia alguma vez namorado uma mulata. É preocupante pensar que ingresso no ensino superior passa a incluir também avaliação de vinculações político-ideológicas.

O vestibular em curso já gerou uma estatística significativa. Se no concurso passado 4,8% (212 em 4.385) não tiveram a autodeclaração homologada, a cifra subiu para 15,8% (624 em 3.942). No vestibular anterior, sob as muitas críticas, autoridades da UnB afirmaram que a comissão havia sido particularmente inclusiva. Talvez apostando que o tema já não está na mesma proeminência na mídia, o cinto foi apertado. Mais que triplicou a porcentagem dos que se autodeclararam negros mas que não foram considerados negros.

A comissão da UnB recebeu uma saraivada de críticas, incluindo de instituições de peso. A Associação Brasileira de Antropologia (ABA), além de frisar o arcaísmo dos procedimentos, manifestou preocupação quanto à pretensa objetividade, dado que não há critérios objetivos de classificação racial. A Academia Brasileira de Ciências, em documento sobre a reforma universitária, enfatizou que o preconceito racial no país não deve ser enfrentado com critérios de inspiração racial ou mesmo racista, destituídos de qualquer base científica.

Mesmo frente às muitas críticas, a UnB manteve os procedimentos. Nem mesmo houve a inclusão de critério socioeconômico. Um candidato negro de classe média alta, que estudou toda a sua vida em escola particular, pode se beneficiar das cotas, estando em ampla vantagem em relação a um outro não-negro, pobre e egresso de escola pública.

É fundamental que as críticas aos mecanismos de seleção utilizados pelas instituições de ensino superior, como no caso da UnB, não sejam confundidas com as tentativas de inviabilizar a implantação de sistemas de cotas raciais. De fato, é possível que muitos críticos não estejam de acordo com as cotas. Todavia, há uma questão profunda que não pode ser menosprezada, qual seja, os riscos de estabelecer comissões para certificar se alguém é ou não negro (ou branco, amarelo, indígena, etc) neste país. Mesmo os formuladores da proposta original de cotas da UnB eram a favor unicamente do uso da auto-atribuição racial, à semelhança do estipulado em acordos internacionais, como a Convenção 169 da OIT.

A comissão de homologação da UnB leva a uma ruptura com um ¿acordo tácito¿ que vem vigorando no Brasil, qual seja, do respeito à auto-atribuição de raça no plano maior das relações sociais. A valorização desse critério, próprio das sociedades modernas e imprescindível em face da fluidez racial existente no Brasil, cai por terra a partir da atuação de comissões como aquela da UnB. O respeito à auto-atribuição racial tem sido um ponto defendido pelos movimentos sociais desde longa data, inclusive por parte de lideranças do movimento negro.

Os defensores do sistema da UnB contra-argumentarão que é preciso controlar os ¿fraudadores raciais¿, aqueles que se dirão negros somente para usufruir do benefício das cotas. Cabe lembrar que a ampla maioria das instituições que adotaram as cotas no país tem preferido depender unicamente da autodeclaração. Possivelmente avaliam que os custos sociais e históricos de implantar um tribunal racial, como foi rotulado o sistema da UnB, podem ser por demais elevados a médio e a longo prazos.

Acrescente-se o fato de que instituições de ensino superior têm lidado com a efetiva premência de aumentar o ingresso de negros no ensino do terceiro grau prescindindo do questionamento quanto à auto-atribuição de raça. A USP promoverá a realização de cursos pré-vestibular especiais na tentativa de nivelar as condições de acesso. Na Unicamp foi aprovado um sistema que estabelecerá pontuações extras na prova do vestibular para alunos de escolas públicas que se autodeclararem negros, pardos ou indígenas.

O respeito à auto-atribuição de pertencimento racial é de extrema relevância para fins dos debates sobre direitos humanos e cidadania no Brasil. Esperemos que as discussões sobre a Reforma Universitária que estão em andamento atentem para a encruzilhada na qual nos encontramos. RICARDO VENTURA SANTOS é pesquisador da Fiocruz e do Museu Nacional/UFRJ. MARCOS CHOR MAIO é pesquisador do Fiocruz..