Título: O que não se diz
Autor: JOSÉ LUÍS PETRUCCELLI e MOEMA TEIXEIRA
Fonte: O Globo, 06/12/2004, Opinião, p. 7

Os debates sobre cotas na universidade costumam basear-se em estatísticas, as quais, geralmente, parecem confirmar o que se pretende demonstrar. Mas devemos ficar alertas para o fato de que apenas alguns dados não conseguem dar conta da complexidade da realidade social. Estatísticas só ¿falam¿ quando adequadamente inseridas em contextos que lhes outorgam significado. No caso do artigo ¿Aos congressistas, uma carta sobre cotas¿ (O GLOBO, 16/11) tem-se um bom exemplo do que não deve ser feito com dados dessa natureza.

Uma questão se refere à escolha das estatísticas apresentadas. Conclusões para o conjunto da população não podem ser tiradas a partir do estudo de uma pequena amostra, como faz o artigo citado.

Assim, com as informações referentes ao total da população do país, considerou-se aqui o rendimento médio mensal familiar per capita ¿ resolvendo o problema do tamanho da família ¿ por faixas de salários-mínimos (SM), observando-se os diferenciais entre brancos e negros para todas as categorias de anos de estudo ¿ e não apenas para as intermediárias conforme o artigo. Verificou-se que entre os que percebem até meio salário-mínimo per capita estão 21% dos brancos e 44% dos negros e entre os que percebem mais de 3 salários-mínimos per capita figuram 17% dos brancos e 4% dos negros. Considerando, ainda, os que ganham mais de 10 salários-mínimos per capita , encontraram-se 2,5% dos brancos e apenas 0,4% dos negros. As diferenças falam por si, os dados indicam apropriações diferenciadas dos rendimentos, sendo os brancos sempre os mais favorecidos.

Por outro lado, comparando os rendimentos entre brancos e negros com os mesmos anos de estudo, verifica-se que o percentual de negros é sempre maior que o de brancos nas faixas de menores rendimentos e que este diferencial aumenta sistematicamente com os anos de estudo. Ou seja, 56% dos negros e 35% dos brancos, sem instrução, e 1,4% dos negros e 0,3% dos brancos com 15 anos ou mais de estudo vivem com até meio salário-mínimo. Já entre os que percebem mais de 5 salários-mínimos per capita , o percentual de brancos é maior independentemente dos anos de estudo, sendo que 50% dos brancos com 15 anos ou mais de estudo vivem com mais de 5 salários-mínimos per capita e menos de 30% dos negros estão na mesma condição.

Em relação à questão central que nos ocupa, as cotas nas universidades, uma realidade não pode ser ocultada: a de que desde que as escolas, faculdades e universidades foram fundadas no país, os brancos têm ocupado no mínimo 80% dos lugares. Negros e indígenas têm conseguido uma participação apenas marginal em todos os cursos universitários e especialmente nas carreiras de maior prestígio como medicina e engenharia. Ou seja, não se pode deixar de perceber a existência de um problema racial, tanto através de estatísticas adequadas, e é isso que os indicadores permitem concluir, quanto por meio de pesquisas de campo na área da educação ¿ discriminação e preconceito em aulas, livros e currículos escolares.

Também não se deve colocar um falso dilema entre cotas nas universidades e melhoria do ensino básico. Investimentos maciços em educação são de imperiosa necessidade. Mas o que fazer hoje com os 2 milhões de negros entre 18 e 24 anos que têm nível médio e não conseguem, pelo sistema atual, entrar na universidade? Mesmo se feitos imediatamente tais investimentos, esta seria toda uma geração perdida.

Cabe recomendar, finalmente, a leitura do livro ¿O Curso do Rio: um estudo sobre ação afirmativa no acesso à universidade¿, de Derek Bok, ex-reitor de Harvard, e Willian Bowen, ex-reitor de Princeton, que fazem uma defesa contundente do esforço de admissão de estudantes negros nos EUA e ressaltam os notáveis resultados alcançados na diminuição das desigualdades e melhoria das relações raciais.

Porque ações afirmativas e o caso particular de cotas para negros, indígenas e setores mais desfavorecidos representam o esforço emergencial que a sociedade brasileira deve realizar para tentar resgatar, o mais rapidamente possível, o pleno direito à cidadania dos grupos raciais e sociais sistematicamente excluídos ao longo da história colonial, imperial e republicana do país. JOSÉ LUÍS PETRUCCELLI e MOEMA TEIXEIRA são pesquisadores do IBGE.