Título: De Collor a Lula
Autor: CESAR MAIA
Fonte: O Globo, 06/12/2004, Opinião, p. 7

Há sempre uma vontade incontrolável dos chefes de Estado e de governo para estabelecer etapas, de forma a que o seu momento tenha uma característica fundacional e de ruptura com o passado, ou seja, a entrada num novo ciclo. Neste sentido, discursos, entrevistas e artigos têm procurado localizar o atual governo federal. Alguns críticos o situam como a terceira etapa do governo anterior, afirmando-se na mesma política macroeconômica e na mesma linha de políticas focalizadas de inclusão social. E apontam que seu caráter híbrido impede a formulação ¿ a partir destas bases, que não são de sua natureza ¿ de uma dinâmica econômica expansiva. É claro que o governo não se vê assim. Entende-se em transição em função da herança recebida, identifica as mudanças que promove através de sua política externa e considera-se estar preparando a plataforma para um novo tempo de justiça social e desenvolvimento. Quem sabe num segundo mandato.

Procurei dissecar as questões básicas das últimas administrações para tentar localizar seu ponto de partida. Não são difíceis de serem identificadas: o compromisso com a estabilização econômica; a modernização com uma nova inserção econômica internacional; a reforma do Estado (e ainda está por aí a reforma previdenciária); a afirmação internacional do Brasil e a busca de políticas sociais que rompam o longo ciclo de concentração da renda. Se aceitarmos estes pontos como definidores, então estamos, em verdade, no quarto tempo de um ciclo que começa nas eleições de 1989 e, em seguida, no governo Collor-Itamar.

É evidente que os desvios éticos daquele governo na primeira etapa nada têm a ver com o comportamento básico dos governos seguintes. Mas, nos demais elementos, é evidente que tiveram ali seu ponto de partida, com as simbologias respectivas sublinhadas nas ¿carroças¿ que produziria nossa indústria automobilística, nos ¿marajás¿ que marcariam a administração pública, na necessidade de reformas à Constituição recém-aprovada, na busca de uma inserção internacional como ator destacado ¿ e as viagens de Collor buscaram também este destaque, como as seguintes¿, a crítica às políticas sociais anteriores, que não teve desdobramento e, finalmente, na outra etapa já com Itamar, o segundo e bem-sucedido pacote de estabilização.

No seminário Desenvolvimento com Estabilidade, em setembro de 1999, o então ministro Clóvis Carvalho já sinalizava desta forma ao tratar da estratégia de desenvolvimento: ¿Ela está surgindo aos poucos. Resulta da adaptação do projeto liberal, herdado do período Collor pelo presidente FH, e a abertura da economia é o melhor exemplo.¿ A partir daí, o que vimos foram desdobramentos destas mesmas linhas, claro que de forma muito mais estruturada, com outra base ética e com muito maior perícia e coerência. Mas as linhas foram, e são, basicamente as mesmas. Ninguém tem dúvida que as instituições, a partir da nova Constituição e dos governos que sucederam ao de Collor, viveram um processo de enraizamento e aprofundamento democrático, conquistando muito maior maturidade na última década.

No entanto, é inescapável a qualquer analista isento ¿ olhando o ciclo varguista, sua nuance liberal, juscelinista e, depois, o ciclo militar ¿ que a primeira eleição presidencial posterior ao regime autoritário colocou em cima da mesa aquelas questões e que elas receberam um significativo apoio do eleitorado, a ponto de um dos candidatos da oposição, o senador Mário Covas, abrir a sua campanha falando de ¿choque de capitalismo¿. Se somarmos os discursos que apontavam na direção dos novos paradigmas ¿ Collor, Afif e Covas ¿ teremos aí praticamente 50% do eleitorado. E nem será necessário fazer memória do simbolismo exagerado que Collor usou na campanha e, depois, em seu início de governo para traduzir aquelas como sendo linhas de ruptura.

É sempre difícil aos políticos olharem para um governo que foi desintegrado por seus vícios, cinismo e incompetência e imaginá-lo na raiz do ciclo de que eles são parte. Mas, definitivamente, é assim. E, talvez por isso mesmo, tem sido tão difícil encontrar os caminhos do desenvolvimento econômico sustentável, da justiça social e de uma inserção internacional madura. Pode ser que os obstáculos sejam de origem, que este ciclo aberto tenha sido muito mais reativo aos atrasos institucionais e estruturais brasileiros, e que por isso mesmo não estimulou a ¿intelligentzia criolla¿ a procurar a equação do futuro e a confundi-la com a crítica ao passado.

Os fatos estão aí. Sejam os que mostram o quanto evoluímos neste processo, sejam os fracassos em encontrar a equação da dinamização econômica e social ¿ sustentável, é claro ¿ do país. São estes fatos que nos permitem dizer, dentro da lógica das etapas, que ainda vivemos um ciclo que efetivamente começa no período Collor-Itamar, que o intensificou, o estruturou, lhe deu substância e coerência, mas que ainda não foi superado. Este é o desafio que o país enfrenta para encontrar seu destino de progresso econômico e social num ciclo longo, como outros países têm conseguido. O desafio é superá-lo. CESAR MAIA é prefeito do Rio.