Título: Combater a pobreza, esquecer as cores
Autor: ALI KAMEL
Fonte: O Globo, 14/12/2004, Opinião, p. 7

Somos um país em que 40% da população se dizem pardos. Como pardo é, por definição, fruto do casamento de pessoas de cores diferentes, fica difícil dizer que somos um país bicolor. Mesmo assim, é cada vez maior o número daqueles que nos vêem como um país de brancos oprimindo negros. Para eles, nossa miscigenação, o maior troféu dos brasileiros contra o racismo, passou a ser delírio das elites.

Em 16 de novembro, publiquei artigo mostrando que pretos, pardos e brancos de mesmo perfil socioeconômico (renda, número de filhos, e zona de moradia) têm as mesmas dificuldades, independentemente da cor. Em resposta, dois artigos foram publicados aqui nesta página. Um de Rosana Heringer e outro de José Luiz Petruccelli e Moema Teixeira. Nenhum refutou os meus dados, mas ambos usaram o mesmo argumento para desmerecê-los: tudo bem que pobres tenham as mesmas dificuldades, sejam brancos ou sejam pretos e pardos (que eles chamam negros), mas o importante é que há muito mais negros pobres do que brancos pobres. Na pobreza, 65% são negros e 35%, brancos.

E daí? A partir dessa constatação, que eu nunca neguei, o que devemos fazer? Uma segregação racial na pobreza, adotando-se políticas em benefício dos negros e abandonando à própria sorte os brancos pobres, mesmo se eles passam pelas mesmas provações que os negros? Para usar uma palavra exata, discriminar alguém pela cor, negros em benefício dos brancos ou brancos em benefício de negros, é racismo. Trinta e cinco por cento de brancos pobres formam uma multidão de 21 milhões de pessoas. Não me entra na cabeça qual razão ¿humanitária¿ pode justificar o abandono de 21 milhões de cidadãos. Para mim, o certo é fazer de tudo para diminuir a pobreza, sem se preocupar com cor.

O maior número de negros pobres, porém, não foi a única crítica. Eles contestaram também o tamanho da minha amostra. Petruccelli e Teixeira advertem os leitores de que ¿estatísticas só `falam¿ quando inseridas em contextos que lhes outorgam significado¿.

Mas, em seguida, quando começam a expor os seus dados, dizem que ¿as diferenças falam por si¿. A crítica é infundada. O grupo que o estatístico Elmo Iorio estudou tem 13 milhões de indivíduos. Ele usou uma amostra de 29 mil, estatisticamente um número mais do que suficiente para que se tirem conclusões sobre todo o grupo estudado. As estatísticas do meu artigo não falam por si, porque eu falo por elas. Como Petruccelli e Teixeira e todos os que citam estatísticas.

Houve também a crítica de sempre: negros e brancos com mesmo número de anos na escola têm rendimentos desiguais, brancos recebendo mais do que negros. Já disse em mais de um artigo que ter o mesmo número de anos na escola não significa ter recebido uma educação de mesmo nível.

Se os negros (pretos e pardos) são maioria entre os pobres, eles necessariamente receberam uma educação pior, não porque são negros, mas porque são pobres. Mesmo entre os que o IBGE considera analfabetos funcionais (aqueles com menos de quatro anos de estudo), as diferenças existem.

Estudos mostram que, entre os que nunca foram à escola, 20% conseguem localizar informações simples em enunciados de uma frase. E entre aqueles que têm de 1 a 3 anos de estudo, 32% são analfabetos absolutos, 51% localizam informações simples e 18% têm uma habilidade básica, capazes de localizar informações em cartas e notícias. Assim, é impossível pegar números frios do IBGE e garantir que todos os que têm até 4 anos de estudo formam uma base homogênea e merecem salários iguais.

Por fim, Petruccelli e Teixeira recomendam a leitura de ¿O curso do rio: um estudo sobre ação afirmativa no acesso à universidade¿, livro de Derek Bok e William Bowen, ex-reitores de Harvard e Princeton, respectivamente. O estudo mostra o efeito positivo da admissão facilitada de negros no ensino superior americano. Eu, novamente, recomendo a leitura de ¿Ação afirmativa ao redor do mundo: um estudo empírico¿, de Thomas Sowell, que a editora UniverCidade está lançando.

Nele, Sowell mostra as muitas deficiências do livro de Bok e Bowen. Primeiramente, eles estudaram a situação, não dos estudantes negros beneficiados por ações afirmativas, mas dos estudantes negros em geral, incluindo aqueles que entraram na universidade sem usar nenhum benefício. O segundo ponto é que os autores estudaram 24 escolas privadas e apenas quatro públicas, sendo que apenas 9% dos negros freqüentam escolas privadas nos EUA. Além disso, 64% dos alunos pesquisados tinham pai ou mãe formado em faculdade, um número cinco vezes maior do que a média nacional. Diante disso, a validade da pesquisa de Bok e Bowen é bastante questionável.

Evidentemente, Heringer, Petruccelli e Teixeira são pesquisadores sérios, bem-intencionados e preocupados com o país. Mas eles têm em seus textos o vício comum aos que defendem as cotas: parecem sempre se colocar na posição de heróis lutando contra insensíveis. Nessa história, porém, não há nem heróis nem insensíveis. Existem apenas cidadãos que pensam diferente. Eu não acredito em políticas racistas para acabar com o racismo. Eu não acredito em políticas que levarão à cisão racial da sociedade brasileira, principalmente entre os pobres. Eu prefiro políticas igualitárias que lutem contra a pobreza. Eu quero o país miscigenado que, até há pouco, queríamos ser. Mais igualitário, sem dúvida, mas miscigenado.

P.S.: Quinta-feira, o IBGE divulgará o capítulo sobre nutrição da Pesquisa de Orçamento Familiar. Finalmente, os brasileiros saberão quantos de nós passam fome.