Título: Fome é menor, mas linha de pobreza pode subir
Autor: Flávia Oliveira
Fonte: O Globo, 17/12/2004, Economia, p. 27

A segunda safra de indicadores do mais completo levantamento já feito sobre os gastos das famílias brasileiras promete uma revolução nas estatísticas sociais do país. E não necessariamente melhorando-as. Os especialistas festejam o fato de a fome no Brasil não se aproximar nem remotamente dos níveis africanos, mas alertam que a sofisticação dos padrões de consumo de toda a sociedade pode pressionar para cima o valor das linhas de pobreza e, conseqüentemente, elevar a proporção de pobres. A economista Sonia Rocha, da Fundação Getúlio Vargas (FGV) ¿ que estima em 16,9 milhões o total de indigentes e em 60,5 milhões o de pobres no país ¿ diz que, por questões metodológicas, os percentuais tendem a aumentar em razão da quantidade de itens que, agora, integram a cesta de compras dos brasileiros de diferentes níveis de renda.

¿ Graças a Deus as pessoas não estão desnutridas, mas as linhas de pobreza não vão obrigatoriamente mostrar isso. Elas são calculadas com base num padrão de consumo que se sofisticou. O mix de alimentos estabelecido pela nova POF encarece a cesta de consumo. Se a cesta é mais cara, a linha aumenta. No caso da minha metodologia, a proporção de pobres pode aumentar em dez pontos (percentuais) se a linha passar a refletir o consumo como ele é ¿ diz a pesquisadora, autora do livro ¿Pobreza no Brasil. Afinal, do que se trata?¿.

O raciocínio encontra eco nos primeiros resultados, divulgados em maio, da mesma Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) que tornou possível diagnosticar que 4% dos brasileiros com 20 anos ou mais apresentam déficit de peso. Quando investigou a percepção das famílias sobre fome e falta de dinheiro, a POF trouxe números alarmantes. Segundo o IBGE, 46,7% das famílias declararam não comer a quantidade de alimentos que considera suficiente. E que dois terços delas disseram que não comem melhor por falta de renda.

¿ A POF está substituindo a discussão sobre passar fome pela de comer bem ¿ resume Márcia Quintslr, coordenadora de Índices de Preços do IBGE.

Pobres tentam acompanhar o padrão dos ricos

Os pesquisadores transformaram em calorias a quantidade de alimentos disponível nos domicílios. Descobriram que o peso de cada item varia pouco quando se compara a cesta do nível de renda mais baixo (até R$ 400 por mês) com a do mais alto (acima de R$ 3 mil). O que oscila fortemente é a quantidade.

O GLOBO dividiu por 12 a quantidade anual per capita de alimentos adquiridos pelas famílias dos dois extremos de rendimento para chegar à média mensal. As duas cestas têm composição semelhante, incluindo arroz, feijão, carne, pão e laticínios. Mas a quantidade de comida adquirida pelos que ganham menos de R$ 400 equivale à metade do que conseguem comprar os que ganham mais de R$ 3 mil.

Os dois carrinhos resumem as principais conclusões dos dois primeiros blocos de divulgação da POF. A participação de carboidratos, proteínas e lipídios na despensa de pobres e ricos difere pouco, sugerindo que os primeiros tentam acompanhar o padrão dos demais. Mas como a quantidade comprada pelos pobres soma aproximadamente 1.485 calorias, contra 2.075 dos demais, há sinais de que aqueles dependem de refeições fora de casa para suprir as necessidades calóricas. Caso contrário, estarão sob risco de desnutrição.

O economista Marcelo Neri, chefe do Centro de Políticas Sociais da FGV, reconhece o valor das novas informações da POF, mas não a considera instrumento adequado para analisar a evolução dos indicadores sociais ao longo do tempo. Para ele, mais importante que o nível de indigência é o desenho de políticas públicas que privilegiem os mais pobres entre os pobres. Ele admite que a proporção de indigentes em sua metodologia, que atualmente estima de 47 milhões o total de miseráveis, pode aumentar com a cesta da nova POF.

¿ O mais importante é que, em 30 anos, tanto a proporção de desnutridos quanto a de miseráveis caiu à metade. É a prova de que os dados são consistentes, embora tratem de níveis diferentes, que passam pela subjetividade de cada pesquisador ¿ diz.