Título: TIRO NA ÁGUA
Autor:
Fonte: O Globo, 22/12/2004, Opinião, p. 6

APesquisa de Orçamento Familiar (POF) divulgada pelo IBGE na semana passada veio para ordenar o debate sobre a fome no Brasil ¿ um tema carregado de emoção e contaminado por interesses políticos e eleitorais.

O número de famélicos já oscilou entre menos de 10 milhões e mais de 50 milhões. Se o discurso era oposicionista, inflava-se a estatística; se da situação, o número encolhia.

Realizada com rigor científico entre 48.470 famílias, no período de julho de 2002 a junho de 2003, a pesquisa consistiu num acompanhamento atento de hábitos de consumo. Cada um dos adultos entrevistados foi também medido e pesado. Entre os resultados do levantamento, um tem importância estratégica: apenas 4% dos adultos apresentam déficit de peso, ou seja, são magros. Trata-se de 3,8 milhões de brasileiros, excluídos crianças e adolescentes ¿ objeto de um estudo a ser divulgado no ano que vem. Entre eles, por óbvio, encontram-se os que passam fome. Mas muitos, é claro, são magros por razões hereditárias.

Ou seja, o problema da fome no Brasil, longe de assumir proporções catastróficas, está circunscrito a um universo bem mais limitado do que imaginavam alguns. O drama é menor do que se dizia.

Estranhamente, porém, em vez de ser saudada pelo governo como uma boa notícia, essa importante radiografia tirada pelo IBGE criou resistências em Brasília. A começar pelo ministro do Desenvolvimento Social, Patrus Ananias, que, ao comentar a pesquisa, apressou-se a reafirmar as metas ambiciosas do Bolsa Família.

Espanto maior foi causado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Na campanha eleitoral de 2002, o candidato Lula chegou a admitir que não acreditava na existência de 53 milhões de famintos, um número por ele considerado ¿absurdo¿. O trabalho do IBGE , portanto, dá razão ao presidente. Mas Lula também demonstrou estar incomodado pelo fato de o IBGE ter constatado que a grande mazela nutricional no país é a obesidade, e não a desnutrição. Revelando desinformação quanto ao rigor metodológico do levantamento, o presidente confundiu a POF com pesquisas de sondagem de opinião: ¿Nem todo mundo que passa fome, reconhece que passa fome.¿ Como as pessoas visitadas pelo IBGE foram medidas e pesadas, e não simplesmente indagadas se sentem fome ---- além de os alimentos terem sido listados ---- o comentário do presidente caiu no vazio.

O governo mostra-se receoso de perder sua bandeira de luta contra a fome. Comete um equívoco, pois, com base no mapeamento feito pela POF, ele poderá redirecionar recursos do Bolsas Família ---- que já são volumosos --- para atacar a pobreza. Que não deve ser confundida com a fome, uma questão a ser tratada de forma focalizada, a partir de estudos como o do IBGE.

Há fraudes e outras distorções no Bolsa Família. O que não o invalida. A sociedade brasileira apóia programas de transferência de renda, com a cobrança de contrapartidas aos beneficiários. Mas a tarefa do governo Lula é dar eficiência ao Bolsa Família, e não se fechar em dogmas. Há sempre o risco de o clientelismo e o populismo eleitoreiro tomarem de assalto uma política social que só tem a ganhar --- e o país --- se seus responsáveis admitirem a necessidade indiscutível de revisões profundas.