Título: Fome gorda
Autor: Merval Pereira
Fonte: O Globo, 23/12/2004, O País, p. 4

Frei Betto, o ex-assessor especial do presidente Lula no Palácio do Planalto e ex-coordenador do Fome Zero, que deixou o cargo esta semana alegando desencanto com a burocracia estatal e disposto a recuperar a liberdade de escrever e de opinar, inclusive sobre o governo, acha que, no enfrentamento entre o presidente e o IBGE com relação ao número de pessoas que passam fome no país, houve mal-entendidos de ambas as partes. ¿Sempre disse que no Brasil não temos aquela fome que gera fotos do Sebastião Salgado, aquela fome esquálida, africana. Mas temos a fome gorda, da alimentação desbalanceada, do excesso de gordura saturada, do excesso de açúcar¿.

Ele acha que esse tipo de fome, ¿que provoca distúrbios glandulares, pressão alta e uma série de problemas físicos¿ deveria ser tratada dentro da concepção do Fome Zero, que, segundo ele, ¿não é um programa só para acabar com a fome, mas de educação alimentar¿.

Ele lamenta que o governo não tenha nunca conseguido passar para a sociedade esse entendimento amplo sobre o que é a fome no país. Atribui isso à falta de sinergia entre os diversos ministérios: ¿Se houvesse, poderíamos tratar do problema da obesidade da mesma maneira como tratamos a fome¿, diz Betto.

De fato, até hoje, dois anos depois de instalado, o governo ainda não conseguiu fazer com que o Conselho de Segurança Alimentar (Consea) tenha uma atuação para unir as ações dos diversos ministérios. Lula chegou mesmo, em certo momento, a repreender os ministros, que pouco comparecem às reuniões do Conselho. Dos 14 que fazem parte do Consea, nunca mais de dois ou três comparecem às reuniões mensais.

Há também uma Câmara de Políticas Sociais, que até agora só se reuniu no máximo uma meia dúzia de vezes. A questão burocrática, que tanto pesou na decisão de Frei Betto de sair do governo, merece muitas críticas dentro do próprio governo. Seria preciso mais agilidade, reclamam os que consideram que o governo está cheio de câmaras, de conselhos, caracterizando um assembleísmo que atravanca a máquina burocrática estatal.

Mas essa impossibilidade de colocar os ministérios trabalhando nos mesmos projetos tem a ver menos com a burocracia e mais com uma disputa interna no governo sobre os rumos que devem tomar os programas sociais unificados no Ministério do Desenvolvimento Social.

Os que se denominam ¿estruturantes¿, entre os quais Frei Betto se incluía, consideram que o Fome Zero é a principal política pública desse governo, na qual deveria haver uma sinergia de todos os ministérios e estatais, uma transversalidade de ações interministeriais que não tem ocorrido.

O fato é que há uma divisão no Ministério entre os que privilegiam o Bolsa Família como programa principal da área social do governo, e os que acham que ele não é um programa à parte, mas um programa dentro do Fome Zero. Com a saída de Betto, prevalece no momento a linha do ministro Patrus Ananias, que usa o Fome Zero mais como um slogan, dando prioridade ao Bolsa Família.

Amigo íntimo do presidente Lula, fundador do Partido dos Trabalhadores a partir do trabalho que fazia nas comunidades eclesiais de base (Cebs), Frei Betto diz que Lula sabe quais são as conseqüências da fome ¿porque perdeu quatro irmãos por fome, e ele mesmo lembra que era barrigudinho, mas de verme¿.

Antes do discurso de improviso que o presidente fez, contestando os números da pesquisa do IBGE, Frei Betto conversou com ele sobre essa maneira mais ampla de ver o fenômeno da fome no país: ¿Mostrei para o Lula um artigo que escrevi sobre esse conceito amplo da questão da fome no Brasil e o sentido do programa Fome Zero, mas ele estava muito incomodado com a pesquisa do IBGE¿, lembra Betto

Ele achou que o organismo foi inábil ao divulgar aquela pesquisa sem explicações ¿porque ficou parecendo que o governo inventou os números do Fome Zero. Mas os números com que trabalhamos são do IBGE, do Ipea, o governo não inventa números¿.

Betto acha que o país deveria ter apenas um instituto que produzisse as estatísticas oficiais, ¿porque os números são muito disparatados¿. Ele viu o documentário ¿Entreatos¿, de João Moreira Salles, onde Lula aparece desacreditando de números como 53 milhões de brasileiros famintos, ou 25 milhões de mulheres morrendo de aborto, citado por Betto em uma conferência: ¿Lula tem razão, os números são muito contraditórios¿.

Para Frei Betto, o problema da alimentação do brasileiro é mais amplo, e inclui a mortalidade infantil: ¿Nós ainda temos 29 mortes por cada mil crianças nascidas, quando Cuba está com 9 mortes, e vários países latino-americanos estão melhores do que nós¿, ressalta Betto. ¿Pergunte a dona Zilda Arns e ela vai lhe dizer que aquelas crianças que aparecem com disenteria estão com fome¿.

Para ele, a segurança alimentar ¿deveria até ser um programa nas escolas, porque hoje as crianças brasileiras não comem verde, não gostam de frutas¿. Para Frei Betto, as escolas deveriam ensinar as crianças a plantar uma horta, o que serviria também para que elas se acostumassem a ¿mexer com a terra¿. Ele cita a contradição que é conversar com educadores, diretores de escolas, ¿receber uma lição sobre hábitos alimentares, mas ver que as mesmas porcarias que são vendidas na porta da escola estão à venda na cantina¿.

Colocado dessa maneira, desinflado numericamente mas ampliado em sua função social, inclusive de inclusão através do acompanhamento educacional e médico, o Fome Zero pode ter um sentido, mesmo que os números da famintos seja menor. Mas será que ele assim serve aos propósitos propagandísticos do governo?