Título: Alívio e desabafo em Paris
Autor:
Fonte: O Globo, 23/12/2004, O Mundo, p. 37

Dois jornalistas franceses libertados terça-feira no Iraque ¿ depois de 124 dias nas mãos de seqüestradores ¿ chegaram ontem a Paris, às vésperas do Natal, sendo recebidos com euforia e tratados como heróis. A festa deu lugar, no entanto, a uma sensação de desconforto quando um deles criticou duramente o esforço de um deputado conservador (governista) para libertá-los, o que teria prolongado a detenção.

Georges Malbrunot disse que uma viagem do deputado Didier Julia a Bagdá, no início de outubro, ¿jogou com as vidas de dois compatriotas¿.

¿ Estou chocado com o comportamento dessa pessoa. É uma insolência ¿ disse o jornalista num aeroporto militar nos arredores de Paris, onde ele e seu colega Christian Chesnot foram recebidos pelo presidente Jacques Chirac e pelo primeiro-ministro Jean-Pierre Raffarin.

Julia dissera que seria capaz de soltar os reféns e foi a Bagdá, anunciando que a libertação estava próxima. Em seguida, entretanto, o governo admitiu, embaraçado, que depois da interferência do deputado os contatos com intermediários dos seqüestradores esfriaram. O presidente da Assembléia Nacional, Jean-Louis Debre, afirmou ontem que espera obter mais informações sobre a ação do deputado.

Grupos de oposição pedem explicação

O governo negou ter pago resgate. Chirac ¿ que interrompeu uma temporada no Marrocos para receber os jornalistas ¿ disse que a libertação foi possível graças à ação da Direção Geral de Segurança Externa, agência de inteligência francesa. Mas afirmou também:

¿ Atribuímos a libertação à mobilização e à unidade do povo francês.

Grupos de oposição questionaram, porém, a maneira como o governo lidou com a crise.

¿ Precisamos pedir explicações sobre todas as fases da detenção. Agora que a liberdade deles está assegurada, informar o Parlamento sobre todas as condições em que as discussões se deram desde agosto é o mínimo a ser feito ¿ disse François Hollande, líder do Partido Socialista.

O seqüestro de Malbrunot, do ¿Le Figaro¿, e Chesnot, da Radio France Internationale, chocara os franceses, uma vez que seu país foi um dos maiores opositores da guerra no Iraque. O Exército Islâmico no Iraque ¿ grupo que assumiu a autoria do seqüestro ¿ disse, de início, que a França deveria desistir de aprovar uma lei que proibiria o uso de véu islâmico em escolas. Mas a lei foi aprovada e o grupo não se manifestou. Quinta-feira passada, em mensagem na internet, afirmou ter libertado os jornalistas porque ficou provado que eles não eram espiões dos EUA.

Jornais franceses comemoraram o feliz desfecho, mas alguns criticaram o governo por criar expectativas sobre a libertação para em seguida se mostrar cauteloso. ¿A diplomacia francesa sai danificada¿, disse o ¿Libération¿. ¿Sua (do governo) tradicional política árabe e o não-alinhamento na cruzada de Bush no Iraque não o protegeu do pior e não o impôs no cenário internacional.¿

`Vivemos uma experiência difícil¿

Chesnot, de 37 anos, e Malbrunot, de 41, disseram que sua libertação foi inesperada e que passaram por momentos difíceis. Mas afirmaram também terem sido bem tratados pelos seqüestradores, que os transferiram de lugar pelo menos cinco vezes, sempre com os olhos vendados e dentro de uma espécie de caixão de papelão. Em duas ocasiões, forças americanas bombardearam áreas próximas a lugares onde estavam, disse Malbrunot. Ele e seu colega afirmaram que repetiam aos seqüestradores que não eram americanos e não apoiavam a guerra. Conseguiam falar com eles em árabe.

¿ Vivemos uma experiência difícil, às vezes muito difícil. Mas ainda assim não perdemos a esperança. Confiamos na ação das autoridades francesas. ¿ disse Malbrunot, contando que viviam ¿cercados por pessoas com máscaras e armas¿.

Aparentemente saudáveis, porém mais magros, os jornalistas abraçaram parentes comovidos. Chesnot contou que primeiramente ele e o colega foram levados para uma fazenda perto de Bagdá onde o jornalista italiano Enzo Baldoni foi mantido antes de ser executado, em agosto. Mais de 120 estrangeiros foram seqüestrados desde abril no Iraque, e mais de 30 deles foram assassinados, muitas vezes diante de câmeras.

LEIA MAIS