Título: O DIREITO DE SER GAY
Autor: Ari Roitman
Fonte: O Globo, 28/12/2004, Opinião, p. 7

Felizmente já passou. Para alívio de muitíssima gente, há poucos dias foi derrotado na Assembléia Legislativa um curioso projeto de lei. Mesmo assim, seu conteúdo vale a pena ser comentado: trata-se de iniciativa de um ultracriativo deputado que pretendeu promover o apoio público (leia-se verbas) a instituições destinadas a ajudar cidadãos desejosos de, digamos assim, livrar-se de sua orientação sexual. Em outras palavras, o objetivo seria recuperar homossexuais para o convívio sadio das pessoas consideradas "normais".

Parece cômico, em pleno século XXI, depararmo-nos com tal tipo de idéias. Dá a impressão de ser um disparate bolado por um desses grandes humoristas que escrevem no GLOBO nos fins de semana, como Verissimo, Marcelo Madureira ou o impagável Olavo de Carvalho, que com graça e engenho usam a caricatura e o nonsense para mostrar o absurdo de tantas coisas à nossa volta. Com suas personagens e afirmações bizarras e suas audazes incursões no ridículo, provocam risadas que nos fazem refletir sobre as misérias da condição humana e do nosso cotidiano, tão humanamente contraditório.

Infelizmente, porém, o projeto não estava no âmbito da galhofa. Era sério, e por isso mesmo assustador. A coisa parece anacrônica, pois faz pensar nas fogueiras medievais que assavam indiscriminadamente hereges, homossexuais, judeus, livre-pensadores e quaisquer outros que não se adaptassem aos padrões (de pensamento ou comportamento) dominantes. Mas, por desgraça, a idéia é de todo coerente com os tristes tempos em que vivemos, marcados por um perigoso avanço do fundamentalismo, da intolerância, dos fanatismos de todo tipo, em escala planetária.

Não é preciso recorrer a Freud, neste espaço, para se insurgir contra a iniciativa estapafúrdia de pretender "converter" pessoas gays em heterossexuais. Hoje é consenso entre os estudiosos que a sexualidade humana pouco tem a ver com supostos instintos (conceito mais adequado à zoologia) e assume tantas formas e modalidades quantas são as dos desejos, de fantasias e imaginação humanas. Basta, então - deixando em paz o sábio vienense - lembrar a Constituição federal e a Declaração Universal dos Direitos Humanos para aplaudir o sentido de justiça que demonstraram os nossos deputados ao rejeitar o tal projeto discriminatório.

Diversos setores, vocalizando anseios e receios da sociedade, fizeram mobilizações e se manifestaram contra a sua aprovação. Entre eles, destacaram-se o Centro Latino-Americano de Sexualidade e Direitos Humanos (Uerj), que organizou um abaixo-assinado com quase 2.000 firmantes, e o deputado Carlos Minc, sempre atento e batalhador pelas boas causas.

Todos sabem como os homossexuais foram perseguidos e massacrados ao longo da nossa civilização, das fogueiras da Inquisição à barbárie nazista. O preconceito e a homofobia têm provocado, historicamente, graves conflitos psicológicos numa enorme quantidade de pessoas, muitas vezes divididas entre seus impulsos mais autênticos e a opressão do meio social. Como tantos outros psicanalistas, médicos, psicólogos e assistentes sociais, sou testemunha de muitos casos de intenso sofrimento psíquico e moral causado pela discriminação.

Por isso, como contraponto ao excêntrico projeto de lei, eu gostaria de lançar aqui uma idéia. Um pouco por provocação, um pouco como recurso de retórica, um pouco talvez para relançar o debate: por que não criar também, em nome da igualdade de direitos, centros de apoio (subvencionados pelo Estado, naturalmente) a cidadãos interessados em tornar-se homossexuais?

Sobrariam candidatos, como diria o Agamenon, talvez com outro verbo.

Seja como for, ainda considero mais adequado, em nome das boas práticas republicanas, reservar os recursos do orçamento para assuntos de interesse público, mantendo as escolhas sexuais de cada um no âmbito da vida privada. Respeito é bom, e todo o mundo gosta.

ARI ROITMAN é psicanalista e editor.