Título: TUDO PELO SOCIAL...
Autor: Ali Kamel
Fonte: O Globo, 28/12/2004, Opinião, p. 7

Melhor notícia, difícil. Depois de um ano de trabalho técnico exemplar, o IBGE mostrou que a desnutrição não é mais um grave problema: o índice de pessoas abaixo do peso é de 4%, número menor que os 5% considerados normais pela OMS. Há 30 anos, homens e mulheres com déficit de peso eram o dobro do que são hoje. Proponho esquecer por um instante a estranha reação negativa do governo diante do fato e fazer o que as autoridades não fizeram: entender como alcançamos um êxito de tal importância. Afinal, não foi por milagre que reduzimos a fome. Nem tampouco porque faz sol quase o ano inteiro no Brasil.

Durante o regime militar, o gasto social como proporção do PIB se manteve num patamar baixo: 8,8%, de 1972 a 1985. Com a democracia, de Sarney a Lula, o gasto só fez aumentar. Em 1994, ele foi de 11,8% do PIB. Em 2002, pulou para 15,5%. Não há ainda dados consolidados sobre 2003 e 2004. Considerando-se todos os níveis de governo - municipal, estadual e federal - o gasto social per capita cresceu significativamente: de 1980 a 2000, o aumento foi de 43,4%, segundo estudo do economista Bresser Pereira.

O resultado não poderia ser outro. A mortalidade infantil era de 104 por mil em 1965. Em 1985, caiu para 67, e, em 2003, para 27,5. A esperança de vida ao nascer era de 55 anos em 1965, 65 anos, em 1985 e, em 2003, pulou para 71 anos. A taxa de analfabetismo era de 32,9% em 1970, caiu para 25,5% em 1980 e, em 2003, diminuiu para 10,6%. Com a nutrição dos brasileiros, aconteceu coisa parecida. A melhora não foi um golpe do IBGE na política social do governo, mas o resultado da política social exigida pelo povo nos últimos vinte anos. Com um custo altíssimo para o país.

Citemos apenas três programas. O país gasta R$20 bi com aposentadorias rurais, o maior programa de transferência de renda como costuma dizer com razão o ex-presidente Fernando Henrique. Todo trabalhador rural ao se aposentar recebe um salário mínimo, sem que tenha contribuído para o sistema. O impacto disso na redução da desnutrição certamente foi grande. O Programa de Alimentação do Trabalhador torna possível, há anos, que empresas deduzam do Imposto de Renda o dobro das despesas com a alimentação de funcionários, dentro dos limites da lei. Hoje, cerca de oito milhões de trabalhadores se beneficiam do programa. Com a merenda escolar, o governo federal gastará em 2005 R$1,4 bi para alimentar com um prato de comida 38 milhões de crianças. Isso representa 22% da população brasileira. Estados e municípios destinam verba ainda maior com o mesmo objetivo.

As autoridades, porém, preferiram desqualificar o trabalho do IBGE (depois, reclamam da baixa auto-estima do brasileiro). Criaram um esdrúxulo e inexistente conceito de "fome gorda", segundo o qual os pobres estariam acima do peso por consumirem muito açúcar, gordura e farinha. E disseram que a mesma pesquisa mostra que 44% da população, 77 milhões de pessoas, "consomem" menos de 1900 calorias/dia (a FAO recomenda 2100 calorias/dia). Ou não leram a pesquisa ou mentiram deliberadamente:

1) Os de menor renda têm uma dieta equilibrada, com 69% de carboidratos, 12% de proteínas e 19% de gorduras. A OMS recomenda entre 55% e 75% de carboidratos, entre 10% e 15% de proteínas e entre 15% e 30% de gorduras. A proporção de proteína disponível para os mais pobres - 12% - é considerada ótima, com a vantagem de que 45% delas são de origem animal.

2) A participação de farinhas na dieta dos mais pobres é normal, cerca de apenas 7% de todos os quilos de alimentos adquiridos. Mesmo que se entupissem de farinha de mandioca, não engordariam, porque ela tem baixo valor energético.

3) A participação do açúcar na dieta é alta, mas proporcionalmente melhor entre os mais pobres (o limite máximo é de 10%): das calorias obtidas de carboidratos, 13% vêm do açúcar. Os de renda mais alta têm apenas 52% da dieta vindos de carboidratos (abaixo do mínimo de 55%). Destes, 11% vêm do açúcar. Portanto, o açúcar, entre os mais pobres, representa 13 pontos percentuais em 69 (56% dos carboidratos, portanto, não são açúcar). E, entre os de maior renda, representa 11 pontos percentuais de 52 (apenas 41% não são açúcar).

4) Entre os de maior renda, a gordura representa 34%, quatro pontos acima do recomendado. Entre os mais pobres, a participação da gordura é de 19%.

5) O IBGE diz expressamente que não mediu as calorias "consumidas", mas apenas as calorias "disponíveis" no domicílio. Porque boa parcela do orçamento do brasileiro é gasta com alimentação fora de casa: 24%, em média, 12% entre os mais pobres e 37% na faixa de maior renda. Essas calorias não foram medidas. Como também não foram medidas as calorias provenientes de alimentação "não adquirida", como merenda escolar e alimentação fornecida no local de trabalho. Se, numa casa, duas crianças almoçam na escola e a empresa onde o pai trabalha lhe dá o almoço, a família adquirirá uma quantidade menor de alimentos. As calorias disponíveis no domicílio serão, portanto, menores do que as de fato ingeridas. Por isso, as pessoas não emagrecem.

A fome não é mais o que era. Atinge poucas centenas de milhares de pessoas, nunca milhões. Isso não quer dizer que não mereça mais atenção. Insistir, porém, em gastar mais R$9 bi ao ano, todos os anos, com o Bolsa Família é um erro. Parte desse valor deve ser usada para extinguir a fome de vez, mas os recursos, em sua maioria, deveriam ser canalizados para saneamento, educação e desenvolvimento regional, o que ajudaria a tirar milhões da pobreza, esta sim a grande chaga nacional.

Em um país maduro, a pesquisa do IBGE obrigaria o governo a rever seus planos. Aqui, porém, o presidente pode jogá-la no lixo e insistir em dar de comer a quem não tem fome. E ainda dizem que, no Brasil, é pequeno o poder dos presidentes.

ALI KAMEL é jornalista.

As autoridades não leram a pesquisa do IBGEou mentiram deliberadamente