Título: FACA NO PESCOÇO
Autor: Helena Chagas
Fonte: O Globo, 29/12/2004, O País, p. 4

Foi tão desgastante a discussão do Orçamento de 2005 que, na cúpula do governo e do Congresso, já existe consenso quanto à necessidade de mudar o sistema. Ou, pelo menos, fechar brechas por onde se infiltram interesses particulares, barganhas diversas, chantagens e até negócios escusos - tudo aquilo que dá ao orçamento de cada ano aquela aura de história mal contada.

Não há ainda condições políticas para zerar tudo e fazer mudanças radicais como a instituição do orçamento impositivo, de cumprimento obrigatório pelo Executivo - o que seria o ideal. Mas algumas imprescindíveis alterações nas regras estabelecidas para a apreciação da lei orçamentária estão amadurecendo e começam a ser negociadas. O presidente da Câmara, João Paulo Cunha (PT-SP), tem tratado do assunto.

Uma das idéias é acabar com as tais emendas coletivas, apresentadas pelas bancadas estaduais, que se transformaram numa espécie de terra de ninguém, onde as empreiteiras fazem a festa. Até as paredes da Câmara e do Senado sabem que esse tipo de emenda se presta a esse tipo de negócio com o dinheiro das obras públicas - ainda que muitos de seus signatários não tenham idéia das maracutaias que outros fazem em seu nome. Esse é justamente o problema: detectada uma irregularidade, é quase impossível chegar ao culpado, já que a emenda é de todos. E há por trás dela um cruzamento de interesses quase impossível de destrinchar.

Em contrapartida, seriam mantidas as emendas individuais, usadas por deputados e senadores para mandar recursos para as bases. Teriam até dotação maior: o valor máximo de R$1,5 milhão por parlamentar seria aumentado para algo em torno de R$4 milhões a partir do ano que vem. Essas emendas incomodam o Executivo porque pulverizam recursos e são vistas como instrumentos de paroquialismo, mas, na verdade, são consideradas de fiscalização relativamente fácil. Afinal, têm digital e identificação. E o parlamentar precisa de um instrumento desse tipo.

Outra alteração discutida é a fixação de um prazo - possivelmente 1º de dezembro de cada ano - para a votação do Orçamento do ano seguinte, que chega ao Congresso em agosto. Medida importante para coibir barganhas e chantagens de última hora - como as que, este ano, assistimos até ontem de madrugada.

Como o Legislativo precisa votar o Orçamento para entrar em recesso, e o Planalto precisa ter a lei aprovada até 31 de dezembro para começar a gastar no ano seguinte, quase todas as barganhas dessa fase são bem sucedidas. Basta o sujeito ameaçar obstruir a votação. O que, por sinal, já virou moda. Só que nem sempre o resultado final da operação é o mais benéfico ao interesse público.

- Somos obrigados a negociar com a faca no pescoço - queixava-se ontem João Paulo, que retornou a Brasília para a votação.

- Nessa época, isso aqui vira um mercado de peixe - observava, por sua vez, o deputado Jorge Bittar (PT-RJ), que já foi relator do Orçamento e é favorável a mudanças nas regras do jogo.

Ninguém acredita, porém, na possibilidade de Executivo e Legislativo se entenderem a ponto de instituir o orçamento impositivo, que deixaria de ser meramente autorizativo como hoje. Em tese, é a forma mais democrática e responsável de se discutir e decidir, a cada ano, as prioridades do gasto público. O governo fecharia sua proposta, o Congresso faria uma discussão séria e o que restasse escrito ali seria rigorosamente cumprido - como qualquer lei.

A coisa começa a pegar, porém, já no Executivo. Sua proposta anual de Orçamento, que deveria ser sempre uma declaração de intenções à sociedade sobre como, onde e quando gastar o dinheiro público, costuma incluir intenções não declaradas - como a de segurar recursos na boca do caixa para aumentar o superávit, por exemplo.

Da capacidade do Congresso de levar adiante uma discussão responsável, sem vender lotes na lua ou encontrar receitas que não vão se realizar - mas que permitem aos parlamentares faturar nas bases - nem se fala.

Por isso, assistimos todos os anos ao mesmo filme: puxa daqui, estica dali, acha-se mais R$10 bilhões para investimento, R$900 milhões para o fundo dos governadores, R$2 bilhões para emendas, e pronto: aí está o Orçamento da União, do tamanho dos sonhos do Congresso, alguns números acima do modelito do Planalto.

E se todas essas estimativas de aumento de receita não se confirmarem? Não acontece nada, nadinha mesmo.