Título: Relação de conflito
Autor: Míriam Leitão
Fonte: O Globo, 29/12/2004, Economia, p. 20

A plácida foto de fim de ano do presidente com os jornalistas da cobertura diária do Planalto nada revela do que foi este ano a relação entre o governo e a imprensa. O presidente Lula, que continua sem dar uma entrevista coletiva formal, chamou os jornalistas de covardes; quis criar um conselho para controlar os jornalistas, expulsar um correspondente do país e ainda não desistiu da agência do audiovisual que, de tão extensa, ameaça também o jornalismo feito nas televisões.

Este foi um ano em que o governo exibiu a face autoritária do PT e recebeu como resposta a rejeição de um país com convicções democráticas amadurecidas. O Conselho Federal de Jornalismo, se fosse aceito como foi proposto, significaria que um grupo de jornalistas, militantes do PT, escolheria indiretamente a primeira diretoria com poderes ilimitados para definir as regras de funcionamento do conselho, o código de ética, e como "controlar, orientar e punir" o exercício da profissão. Bombardeada pelos jornalistas e por outros formadores de opinião, a proposta foi arquivada pela Câmara dos Deputados. O ministro José Dirceu incluiu o CFJ como um dos erros cometidos durante o ano; e o assunto foi enterrado. Mas antes veio aquela infeliz declaração do presidente chamando os jornalistas de "um bando de covardes" por não terem defendido o conselho.

Em outro momento marcante dessa relação, no Dia do Jornalista, o ministro da Secretaria de Comunicação, Luiz Gushiken, quis ensinar o ofício aos profissionais da área e exortou-os a dar notícias boas e a não explorar o contraditório. Isso num governo tão cheio de explícitos contraditórios. Ao longo do ano, houve outras exibições desse mesmo apelo por um jornalismo cor-de-rosa que contornasse os assuntos desconfortáveis para quem está no exercício do poder.

O correspondente Larry Rother, do "The New York Times", escreveu sobre os hábitos etílicos do presidente, os quais ele mesmo vinha propagando ao longo dos anos, distraído de como este tipo de apologia de bebidas fortes pode estragar sua própria imagem e ser um mau exemplo. O alcoolismo é problema grave que destrói pessoas e famílias, autoridades deveriam ter todo o cuidado com o tema. Para se ter uma idéia de como a compreensão disso já avançou na sociedade, o AfroReggae, sobre o qual escrevi dias atrás, não aceita patrocínio de empresas de bebidas ou de cigarros. A reportagem do "NYT" foi considerada exagerada por muitos que a leram e o presidente recebeu a solidariedade geral em artigos na imprensa e declarações até da oposição. Não achou suficiente e, numa reunião de um pequeno grupo, contando com o notável apoio do jornalista André Singer, o governo decidiu expulsar o jornalista. O repúdio foi instantâneo e o governo recuou.

Uma questão ainda em aberto é a Ancinav, a proposta de criar uma agência para regular, fiscalizar e punir o exercício do audiovisual na televisão e no cinema. Nessa, o governo está insistindo. Simula um debate com os setores interessados, altera termos e forma do projeto de lei, mas mantém a essência. Na Agência, cinco diretores decidirão por maioria simples, ou seja, três votos, questões controversas como a de controlar os meios de comunicação para que: "defendam os valores éticos da pessoa e da família; observem a diversidade de fontes de informação e a liberdade de expressão; e tenham responsabilidade editorial e de programação". São questões subjetivas que só podem ser decididas pelos três poderes da República: jamais por três indicados do Planalto. Há várias armadilhas escondidas atrás dos seus artigos, incisos e remissões legais.

O antropólogo Roberto da Matta acha que, na Ancinav, estão expressos vários perigos:

- Ela é centralizadora e tudo o que é centralizador estimula o clientelismo. O mercado decide de forma impessoal; um órgão centralizador fortalece a busca das relações pessoais, uma fonte dos problemas que já tivemos no passado. Tenta defender o regionalismo e a cultura nacional da forma equivocada. É bobagem achar que é possível deter a velocidade de circulação da informação. Eu cresci exposto aos produtos culturais americanos, no cinema e na música, e passei a vida inteira escrevendo, pensando e entendendo o Brasil. O regional sempre sobrevive e hoje, após todos os avanços da integração do país, eu sei mais, estou mais exposto e sou mais simpático ao que é típico de cada região do Brasil do que nos anos 60. É muito perigoso tentar interferir em processos criativos, porque a sociedade tem uma dinâmica cultural mais complexa do que está expresso nos textos da Ancinav.

Durante o ano, o governo lançou uma campanha de marketing para elevar a auto-estima do brasileiro e agora quer lançar outra para aumentar a taxa de afeto nas famílias. A idéia de campanhas assim é equivocada. A auto-estima do brasileiro tem sido recuperada com fatos. O fim da superinflação, que nos tornava esquisitos num mundo estabilizado, foi um passo importante para isso, a retomada do crescimento sustentado, o enfrentamento dos agudos problemas do cotidiano é que farão isso e não os filmetes encomendados a cineastas. A campanha do afeto na família é outra patética tentativa de simplificação do complexo.

O que ficou expresso em todos esses episódios é que o governo gostaria de controlar a opinião. Falhou, recuou. Segundo Roberto da Matta, o governo atual tem aprendido no poder como ser democrático. Tomara que tenha aprendido bastante neste tumultuado ano de 2004.