Título: O custo das influências políticas
Autor: Jurandir Fernando
Fonte: O Globo, 30/12/2004, Opinião, p. 6

As transformações econômicas dos anos 90, com controle da inflação, reabertura dos portos e privatizações, tiveram grande impacto no setor produtivo brasileiro. A adaptação aos novos tempos levou menos ou mais tempo, conforme a capacidade de reação de cada empresário ou segmento empresarial.

As empresas operadoras do transporte público, atualmente em crise, de modo geral ainda não se adaptaram às novas regras e condições de mercado. Todavia, antes de atribuir responsabilidade exclusivamente à iniciativa privada do setor, deve-se registrar que o poder público responde pelo planejamento, a coordenação e o controle do setor. Ou seja, as burocracias estatais limitam - e muito - as iniciativas das empresas operadoras do transporte público.

Na época da inflação, o custo operacional do transporte não era apurado com o necessário rigor, pois expressiva parte da receita vinha das aplicações financeiras no overnight. E como a inflação fazia a população perder a noção de relatividade dos preços, o valor da tarifa passava despercebido. Os criativos políticos brasileiros, com iniciativas demagógico-assistencialistas ou simplesmente eleitoreiras, passaram então a distribuir gratuidades no transporte público. Pouco importava se os beneficiários tinham ou não baixa renda familiar, nem interessavam as condições ou limitações para uso do benefício. E, em época de irresponsabilidade fiscal, não se indagava de onde poderia provir a fonte de custeio.

Como sempre, os discursos sobre assistência social - que é obrigação do poder público, com recursos de todos - escondiam a verdade: apenas parte da sociedade estava bancando a distribuição das gratuidades: os passageiros pagantes. Ou seja, a assistência que deveria ser financiada por toda a sociedade estava sendo custeada apenas pelos usuários pagantes do transporte público, na maior parte trabalhadores e donas-de-casa. A multiplicação das gratuidades tornou a tarifa inviável para o passageiro pagante e, mais uma vez, buscou-se solução política. As tarifas deixaram de ser técnicas (apuradas por planilhas de custos) e passaram a ser políticas, e as empresas operadoras absorveram parte do custo, obviamente em detrimento da qualidade do serviço.

Mas esse retrato do transporte de passageiros em todo o Brasil é muito mais grave no Estado do Rio. Observe-se que é a única unidade da Federação em que a gratuidade dos estudantes é integral. Em todos os outros estados e capitais eles pagam pelo menos metade do valor da tarifa. Também no Rio de Janeiro está a maior carga tributária incidente sobre o transporte público. Além do elevado valor do IPVA, o ICMS encarece não só o próprio serviço de transporte como também o óleo diesel (ao contrário do querosene consumido pelos aviões), os ônibus (ao contrário dos automóveis para taxistas) e outros insumos. Ou seja, o serviço público operado pelas empresas de ônibus, ao contrário do transporte de táxi ou aeroviário, não recebe qualquer tratamento diferenciado.

Certamente a população está desinformada e não sabe que o Estado acha mais justo que o querosene de aviação tenha uma taxação inferior ao diesel e que os taxistas tenham isenção de impostos para aquisição de veículos, enquanto os operadores de transporte público não têm quaisquer benefícios. Aliás, somem-se às iniciativas estaduais as da União. Como vem acontecendo freqüentemente, os aumentos de preços do óleo diesel têm índices sempre superiores aos da gasolina.

Tudo isso se reflete no custo do transporte, encarecendo as tarifas e onerando a população, que cada vez mais busca formas alternativas, como a caminhada, a carona ou a bicicleta, ou maneiras fraudulentas de usufruir gratuidades ou, simplesmente, deixando de voltar para casa, dormindo nas ruas, como indicam pesquisas recentes.

Nesse caldo de cultura surgiram os chamados operadores informais (eufemismo brasileiro para a ilegalidade) que, isentos de qualquer taxação (posto que são sonegadores) e imunes às regras preestabelecidas e engessadoras emitidas pelo poder concedente, têm competitividade inalcançável pelas empresas legalmente estabelecidas. Essa concorrência predatória é mais um fator de degradação da operação do transporte público.

Para completar, registre-se que o planejamento foi esquecido. A malha de linhas e serviços, freqüências e itinerários, equipamentos e modus operandi são os mesmos, apesar das mudanças no perfil urbano. Permanece o quadro de desperdício, com superposição de oferta e irracionalidade e falta de integração inter e intramodal. Os ônibus, responsáveis por mais de 80% dos deslocamentos no transporte público, ainda não têm corredores exclusivos, terminais adequados e compartilhados. Enfim, o transporte público e coletivo não tem prioridade em relação ao transporte privado e individual.

Sem eximir o empresariado do transporte de parte da responsabilidade - até porque, até aqui, não se mostrou competente para romper os perversos paradigmas apontados - a verdade é que aquela categoria vem pagando com exclusividade a conta pela situação do transporte público, suportando indesejável imagem pública. A crise não é de falta de capacidade empresarial, mas sim das influências políticas num setor em que deveriam prevalecer os argumentos técnicos e o interesse público. E para mudar esse quadro só há um caminho: a informação e a conscientização do cidadão.

A taxação e as gratuidades inviabilizam serviço eficaz a preço baixo