Título: VOTO DE CONFIANÇA
Autor: Fernando Henrique Cardoso
Fonte: O Globo, 02/01/2005, O País, p. 10

Apesar da solidez da economia, saldo do ano foi ruim para a Humanidade

Ano novo, é momento de olhar à frente. Embora a economia tenha mostrado robustez invejável em 2004, o saldo do ano não foi bom para a Humanidade. Guerra do Iraque, reforço dos fundamentalismos e terror persistente. Mesmo assim, talvez por isso mesmo, é preciso ter reservas de otimismo.

Há indícios de que não morreu a aposta iluminista de uma convivência humana baseada na razão. Apesar do unilateralismo crescente dos americanos, as Nações Unidas se batem por reformas. Desejam se abrir aos novos agentes da sociedade global, às ONGs e aos movimentos de opinião que ultrapassam as fronteiras dos estados nacionais. Insistem em rever os critérios injustos de controle da organização e pretendem alterar a composição atual do Conselho de Segurança.

Apesar das escaramuças, a diplomacia, com a Europa à frente e a China nos bastidores, preponderou na contenção da corrida atômica do Irã e da Coréia do Norte. Há outros indícios promissores: Shimon Peres negocia entrar no gabinete chefiado pelo Likud de Ariel Sharon (esperemos que para "civilizá-lo") e Tony Blair sai da letargia americanista e parece empenhado na construção do Estado palestino. Toda gente sabe que, sem uma paz mais sólida entre Israel e Palestina, com o reconhecimento recíproco dos dois estados, não haverá futuro tranqüilo no Oriente Médio.

É cedo para dizer se estamos nos afastando de um mundo dominado pelo confronto entre fundamentalismos. Cedo, principalmente, porque os Estados Unidos, berço das liberdades democráticas, parecem agora transformado em leito de Procusto, cheio de espinhos a que alguns compraz chamar de "valores morais". Quando intelectuais do porte de um Samuel Huntington passam a interpretar a própria realidade americana sob a ótica do "choque de civilizações", no caso entre um "eu" anglo-saxão e um outro hispânico, é porque algo de mal e muito profundo enrosca a alma daquele grande país.

Contra o mote do "choque de civilizações", há bons antídotos. Leia-se um Edward Said, que da perspectiva singular de grande intelectual palestino radicado no Ocidente combatia o estereótipo de um orientalismo homogêneo e aterrador. Na direção inversa, leia-se o livro de Ian Buruma e A. Margalit, ¿Occidentalism¿, para entender melhor o que significou o "ocidentalismo" para as culturas orientais.

Mas não é só no terreno cultural e político que o multilateralismo e uma compreensão mais abrangente estão fazendo falta. Também na economia é preciso haver ação coordenada para que o mundo encontre um equilíbrio melhor. Nesse caso, o indício mais promissor é o comportamento da China, que vem se firmando como um fator de estabilidade. Integrou-se no comércio internacional, ingressou na OMC e, quem diria, tornou-se ¿banqueira¿ dos Estados Unidos, absorvendo, junto com o Japão, doses homéricas de papéis de valor instável emitidos pelo Tesouro americano. Assim oferece a possibilidade de que o desregramento fiscal americano não despenque de repente na cabeça de todos nós.

O mundo depende de que os dirigentes chineses consigam administrar com sucessos as contradições da mais impressionante transição econômica, social e política de que tem notícia a História contemporânea. Depende também de que os Estados Unidos abandonem a "economia vodu", expressão usada por Bush pai para criticar a crença de que todo corte de impostos (para os mais ricos) será pago pelo aumento da atividade econômica. Depende ainda de a Europa, pressionada pelo efeito negativo da valorização do euro sobre as exportações e o crescimento, ter disposição para realizar reformas. E depende do Banco Central europeu, bem como dos Bancos Centrais da China, Japão e EUA se disporem a atuar, ora reduzindo, ora aumentando as taxas de juros, coordenadamente, ao invés de deixar que a irracionalidade ¿ ora exuberante, ora depressiva ¿ dos mercados encontre seu término em nova crise que faça o sofrimento de todos nós.

O preço do petróleo é um fator adicional de volatilidade no delicado ajuste que a economia do mundo precisa fazer. Mas diferentemente do passado, há hoje condições melhores para lidar com o problema. Quem sabe não sirva até mesmo para iluminar as mentes dos donos do mundo sobre a seriedade do aquecimento global e as possibilidades de uso de energia renovável e menos poluidora?

E o Brasil? Também dá para desejar e apostar que melhore. Avançamos muito nos últimos anos. Aprendemos a ter uma inflação baixa e sob controle. A Lei de Responsabilidade Fiscal não deixa mais o governante de hoje jogar dívidas no colo dos seus sucessores. Ainda é pesado o passivo que se herdou do passado de descontrole fiscal e inflação, mas as fontes desse descontrole foram eliminadas em sua maior parte. Aprendemos a competir na economia global sem temor de sermos engolidos. O câmbio flutuante (que flutuou a duras penas, depois da dieta necessária para ancorar a estabilização), a base tecnológica que desenvolvemos, a audácia de nossos empreendedores e a incrível disposição de nossa mão-de-obra para trabalhar e aprender, tudo isso junto assegura horizontes melhores.

O governo atual colhe hoje na economia o que outros plantaram no passado e ele soube continuar e aperfeiçoar. Se assim é, por que não esperar que as áreas sociais melhorem e a gestão governamental como um todo se torne mais competente? Por que não esperar que o governo finalmente se convença de que andou para trás nas políticas de transferência de renda para os mais pobres, de que a pobreza e a fome não são a mesma coisa, de que o grande problema do Brasil é a primeira, pois a segunda é decorrência, o que não significa que não se deva e não se possa combater a fome onde e na dimensão em que ela existe, o que já vinha sendo feito e poderia ser reforçado? Por que não esperar que o governo finalmente se convença de que, nas áreas da saúde e da educação, perdeu-se foco, rumo e velocidade?

É este meu voto final: que o governo atual, ainda que sem dar o braço a torcer, rearticule aquilo que ele próprio desarticulou, na administração e nas áreas sociais. Que deixe de inaugurar o já feito e inove onde faz falta a mudança, não se esquecendo que a construção de uma Nação é obra de longo prazo e que Cabral descobriu o Brasil antes de 2003.