Título: Gordos, magros e o Fome Zero
Autor: José Graziano da Silva, Walter Belik e Maya Takagi
Fonte: O Globo, 03/01/2005, Opinião Tema em Debate: Fome e Desnutrição, p. 7

APesquisa de Orçamento Familiar (POF 2003) do IBGE é o mais completo mapeamento da situação alimentar já feito no país. Durante um ano, uma amostra representativa de domicílios foi visitada várias vezes. Seus moradores e os alimentos consumidos foram pesados, medidos. Os entrevistados responderam a perguntas nem sempre fáceis de quantificar: quanto ganhavam; se os alimentos que consumiam eram suficientes; o custo de alimentos recebidos por doação, entre outros itens.

Os dados mostram que a população brasileira com mais de 20 anos inclui quase 3,8 milhões de pessoas com déficit de peso e outros 38,8 milhões com excesso, dos quais 10,5 milhões obesos. Os números impressionam, tanto que ninguém se lembrou de perguntar: e os restantes 133 milhões da população total de 175,8 milhões existente quando a pesquisa foi feita?

Felizmente, a mesma publicação que deu origem à surreal divisão do país entre gordos e magros tem a resposta. E o que ela diz é que brasileiros com renda familiar inferior a um salário-mínimo (R$200 na época da pesquisa) não consumiam sequer 1.900 kcal diárias, menos que o limite inferior recomendado pela FAO e a OMS para uma vida saudável. Ou seja, mais de 77 milhões de homens, mulheres e crianças, praticamente o dobro do total de obesos, não dispõem de quantidade adequada de alimentos em casa, para não falar da qualidade da dieta. Poder-se-ia argumentar que fazem refeições fora do lar, mas a POF mostra que o consumo de alimentos fora de casa é residual nas faixas de renda mais baixa.

O mais surpreendente é que os primeiros dados divulgados pela mesma pesquisa, meses atrás, já indicavam esse cenário de privação:

50% das famílias admitiram então ter ¿dificuldade¿ ou ¿muita dificuldade¿ de chegar no fim do mês com os alimentos disponíveis.

13,8% dos entrevistados declararam ser insuficiente a quantidade de alimentos consumida por suas famílias, e 32,8%, ¿às vezes insuficiente¿;

ou seja, 47% da população manifestaram a percepção de viver em condições de insegurança alimentar.

Outros resultados corroboram o diagnóstico de que a insegurança alimentar é ainda maior do que as indicações originalmente adotadas pelo Programa Fome Zero. Atinge quase metade da população, se consideradas as três dimensões do conceito internacional de segurança alimentar: quantidade de alimento, qualidade nutricional e dignidade do acesso. Precipitaram-se os analistas que, na ânsia de desqualificar o Fome Zero, atropelaram as informações da própria POF. Se há razões históricas para essa cegueira branca, como diria Saramago, elas certamente remetem à nossa brutal desigualdade social. A verdade é que a má consciência brasileira nunca se relacionou bem com palavras como fome, pobreza e miséria. Essa velha indisposição contaminou todo o aparelho de Estado e parte da mídia e da elite, sempre refratárias em se enxergar na imagem invertida de seu privilégio, que enfatiza o papel de políticas públicas ativas para corrigir velhas assimetrias. Desqualificar a decisão de implantar uma política de segurança alimentar faz parte dessa tradição. Melhor que se olhar no espelho é enxergar na POF a fotografia de um Brasil gordo. Ainda que para isso seja preciso esquecer que, no limite, crianças que passam fome nem sobrevivem até os 20 anos para serem pesadas e medidas pelo IBGE.

O Fome Zero foi pensado como um grande guarda-chuva de ações em várias frentes articuladas a uma ¿proposta de política de segurança alimentar e nutricional para o Brasil¿. Esse é o aposto que o acompanha desde o seu lançamento, em outubro de 2001, pelo Instituto Cidadania, até sua adoção pelo presidente Lula, em outubro de 2002. Os que o acusam de ser apenas uma ¿marca-fantasia¿ se detêm na marca, recusando-se a passar à substância. Se o fizessem, não contraporiam a pesquisa do IBGE ao programa: encontrariam ali explicações de por que não se pode tratar a questão da segurança alimentar de forma unilateral, pois envolve uma enorme teia de variáveis. Constatariam que um dos seus eixos consiste em implantar um programa de educação alimentar para crianças e adultos que já envolve a rede pública de ensino e as comunidades e parcerias com empresas como a Editora Globo e a Fundação Roberto Marinho.

Erradicar a fome e a insegurança alimentar é um atalho de justiça possível de alcançar, antes mesmo de corrigir a distribuição de renda num horizonte de longo prazo. Esta é a essência do Fome Zero: construir um lócus favorável à emancipação social, com medidas emergenciais e estruturais que favoreçam o acesso à alimentação e à cidadania, com participação comunitária e educativa.